Texto que compõe o primeiro volume dos “Seminários Outros Olhares”, organizado pela Fábrica de Imagens.
Por Solon Eduardo Annes Viola e Thiago Vieira Pires.
RESUMO
Este artigo apresenta as diferentes nuances que envolvem a cidade enquanto território de disputas e de sociabilidades manifestas dentro de um deslocamento sócio-histórico que mantém no presente as demandas e urgências sufocadas desde o passado. Para que se possa entender e enfrentar os dilemas reativos que emergem do passado e que se apresentam com ares de novidade no atual momento histórico, faz-se necessário percorrer as “ruas da história”, bem como “as ruas da cidade”. Caminhos que são marcados pelas lutas e resistências dos povos contra o arbítrio, os privilégios e as negações de uma pequena elite, que, inconformada, de tempos em tempos, volta à cena pública com as suas práticas e os seus discursos opressivos e segregadores. Dentro desse percurso, o texto explora o paradigma dos direitos humanos, que, assim como a cidade, carrega em si potencialidades e limitações, tanto para o enfrentamento das heranças do passado como para a construção de um futuro que seja incompatível com retrocessos autoritários e no qual a cidadania se aprofunde como participação no processo democrático.
Palavras-chave: Cidade. Manifestações. Democracia. Direitos humanos.
As ruas de Porto Alegre
Dia 15 de março de 2015, ando nas ruas e “sinto uma dor infinita das ruas de Porto Alegre, onde jamais passarei”. Errei, outra vez, o caminho ao descer a Rua da Liberdade e me sentir perdido e amedrontado nas “esquisitas esquinas” dos Moinhos de Vento. (QUINTANA, 2003). São esquinas de um bairro de privilégios. Prédios gigantes de apartamentos imensos, e um parque enfeitado por envelhecidas árvores de intenso verde e flores amareladas. Um parque criado nas décadas de 1960/1970, quando andávamos amedrontados, ausentes de liberdade nas ruas da América Latina.
Nas transversais do tempo que marcam a vida do Parque Moinhos de Vento, reencontro o passado. Ressurge o ódio, manifesto em estranhas palavras repletas de ameaças: “morte para…”, “fora tal partido”, “ame-o ou deixe-o”, “fulanos devem ir para…”. A estética da morte que assombrou as ruas da Alemanha e da Itália desde as décadas de 1920 até a década de 1940 ressurge ameaçando a ainda insegura democracia que ensaiamos tímidos, incapazes de substituir a cultura de privilégios de tão poucos pelo direito de todos.
Estranho Parque o dos Moinhos de Vento. Os meios de comunicação informam que lá o governo do município, em meados de abril deste ano da graça de 2015, instalou mais de 150 pontos de iluminação. Os mesmos meios de comunicação anunciam, pela milésima vez, que se deve cercar outro parque da cidade, o Parque Farroupilha (Parque da Redenção), onde ocorrem feiras de agricultura alternativa, artesanato e antiguidades. Um parque sempre muito mal-iluminado e frequentado por moradores de toda a cidade. Normalmente, é neste parque, ou nas proximidades dele, que se concentram os participantes da parada gay, das passeatas do movimento estudantil e de outros movimentos.
Nele, também ocorrem diferentes manifestações culturais, que vão de apresentações de artistas locais reconhecidos pela cidade ou de destacados músicos brasileiros e latino-americanos. Local plural que acolhe as diversidades e respira ares e vivências de igualdades, o Parque Farroupilha anda às escuras e, seguidamente, vê-se ameaçado por projetos do poder público – ou da grande mídia – de ser acariciado com cercas e portões cadeados. Projetos kafkanianos propondo mais segurança em troca de menos liberdade, em nome de seus frequentadores. Por certo, em quase todas as cidades, ouvem-se, aos milhares, argumentos desse tipo.
Volto a pensar nos versos de Quintana (2003), que sentia “uma dor infinita das ruas de Porto Alegre”, das ruas nas quais ele jamais passaria. Preciso revisar o tempo e não me esquivar dos anúncios que percorrem as ruas do Brasil nos desfiles – anunciadores do medo – com conclames de intervenções e golpes.
Anúncios coloridos que pretendem o retorno ao passado e saúdam, como quem louva improváveis heróis hollywoodianos, quem cometeu atrocidades bárbaras e quem, em situações similares, em tantos outros países, foi condenado por crimes de lesa humanidade. Faixas assustadoras que insistem no retorno ao privilégio, do mesmo modo como fizeram as passeatas com Deus, pela Família e a Propriedade, nos idos de março de 1964 – ambas dispostas a preservar um sistema político cuja arquitetura implica na proteção dos proprietários – dos diversos segmentos do capital – em detrimento da maior parte da população.
As cidades e suas praças – desde a ágora grega – são lugares de vida cotidiana. Nelas e delas, as pessoas e os grupos extraem diferentes formas de sobreviver, múltiplos modos de pensar, sentir e agir. Cada um é um, e um só, mas cada um se faz nas relações com os outros. Faz-se, ao mesmo tempo, igual e diferente. (ELIAS, 1994). Igualdade que, na condição humana, significa ser um indivíduo de direitos. Diferentes nos distintos lugares que ocupam, nos vários espaços sociais dos quais participam, nas praças que frequentam, nas ruas com suas luzes e sombras, suas alegrias e dramas. Distintos, também, nas suas dimensões materiais e cotidianas, nas suas infinitas possibilidades de crença e em suas distintas alternativas de compreender o mundo e transformá-lo.
Cidades com ruas repletas de cercas eletrificadas e muros altos, que guardam privilégios e encobrem preconceitos. Cidades de ruas planas de casas simples, que podem ser alagadas sempre que as chuvas fazem transbordar rios e arroios. Casas simples, sem cadeiras nas calçadas e repletas de promessas, quase sempre esquecidas, feitas de tempo em tempo por milagreiros de tipos diversos. Alguns membros do Parlamento pregam continuamente o retrocesso de pequenos direitos conquistados por meio das pressões feitas pelo movimento social para construir políticas públicas. Os mais recentes deles se vinculam ao combate contínuo e, no limite ilegal, contra o Estatuto da Criança e do Adolescente e a aprovação dos direitos já conquistados do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Alguns daqueles que prometem têm coragem tamanha que lhes permite anunciar tempos difíceis e deuses vingadores. Deuses sempre dispostos a castigar aqueles que não seguem as normas anunciadas como únicas e infalíveis num estranho reviver de conceitos formados em uma sociedade pré-urbana. Um tempo de maniqueísmos fundamentalistas dispostos a classificar coisas e pessoas com base em um pensamento único fundado na crença de um absoluto ou na ilusão ensandecida do poder supremo do mercado.
Cidades de muitas formas com suas “nuances de paredes”, nas quais as mulheres grávidas de vida carregam o futuro, e familiares cultuam seus antepassados em locais outra vez repletos de ruas e andares, reproduzindo nos campos-santos o formato das cidades. (CALVINO, 2006b, p. 101-102). Cidades prenhes de passado e dispostas a desenhar uma “rua encantada num sonho que não sonhei”. (QUINTANA, 2003, p. 67). A produzir um futuro que nem mesmo Oscar Niemeyer conseguiu pensar – um futuro imaginário apto a romper privilégios e desfazer preconceito.
Uma cidade capaz de romper as desigualdades brutais do período colonial, que transformava brancos em senhores, e negros em escravos esquecidos, tendo a sua condição humana negada. Uma cidade que continua a vivenciar uma pedagogia do esquecimento e que deixa, jogado às trevas, os navios dantescos do poema de Castro Alves, enquanto relega a quase nada a saga corajosa de Palmares. Esqueciam o extermínio de um modo de produção de riquezas que transformava seres humanos em “animais que falam”, negando-lhes alma, liberdades, sentimentos e alegrias enquanto sedimentavam um futuro submetido a diferentes tipos de preconceito e descaso social.
Uma cidade tão desigual que torna quase impeditiva a consolidação do ideário iluminista da igualdade, mesmo que não seja a igualdade perfeita que só o Sol concebe ao distribuir seus raios entre as laranjas e os laranjais. (NERUDA, 2004). Uma cidade na qual se torne possível saudar todos os dias, e não só nas festas de fevereiro, a beleza de todos os povos e que possa dedicar “palmas para a ala dos barões famintos, o bloco dos napoleões retintos”. (HOLANDA; HIME, 1986). E nelas, que “os pigmeus do boulevard” (HOLANDA; HIME, 1986) possam se fazer senhores de seus sonhos. Uma cidade que, quando conseguir compreender a importância da igualdade, perceberá que sem ela o respeito às diferenças é quase uma ilusão.
As cidades se confundem no mundo. Não só os aeroportos (CALVINO, 2006a) são iguais em todos os lugares. Da feérica Tóquio à gauchesca Alegrete, da glamorosa Paris à tropical Mossoró, da Nova Iorque de tantas torres à milagrosa cidade do Crato, encontram-se sinais comuns, lugares dispostos a oferecer os mesmos refrigerantes, os mesmos sanduíches, as mesmas inovações de tecnologias.
Embora a globalização da mercadoria, dos seus símbolos e significados, assim como o “deus mercado”, tenha se encarregado de acelerar o processo da inclusão tecnológica, seja ela alienante ou não alienante, um novo nicho de mercado devido à velocidade das comunicações via internet, dificulte a reutilização de produtos tecnologicamente superados pelas populações de baixa renda ao longo do planeta. Embora uma das questões da economia do mercado ideológico seja propalar a dimensão da “qualidade” enquanto busca – ao menos no discurso – ampliar o consumo, o que pode se observar é que nos campos de ponta da economia internacionalizada, por certo, as tecnologias estão mais nas regiões hegemônicas do capitalismo do que nas demais.
Em todas essas cidades, há um pequeno grupo repleto de benefícios e muitos confinados em suas carências que revelam negações de direitos. Em todas elas, existem formas semelhantes para modos de vida distintos. Desde gente que é para brilhar (VELOSO, 1977) ao invisível que morre de frio ou de fome. A cidade abriga todos ou quase todos. Insensível, e algumas vezes feroz, a cidade acalenta e discrimina, acolhe e recusa; permite privilégios e não recusa preconceitos.
Sabes com quem estás falando?!
As nossas cidades – tanto as mais antigas, como Salvador, São Paulo, São Vicente e São Sebastião do Rio de Janeiro, quanto as mais jovens, como Goiânia, Belo Horizonte, Brasília e Palmas do Tocantins – carregam consigo multiplicidades de alternativas, de cores e de gentes que as faz um universo imenso de possibilidades. Mas carregam, também, um universo quase insuperável de controles, de coerções e de tristezas. Tristezas, dizem, tão próprias dos trópicos. Cidades que discriminam e preconceituam em todos os hemisférios do planeta. (LEVI-STRAUSS, 1996).
Essas cidades vindas, as mais antigas, do mundo colonial, e as mais recentes, da modernidade urbana industrial, carregam uma cultura de privilégio. Não raro e em inúmeras circunstâncias, pode-se ouvir o inevitável e ameaçador dito do senhor do engenho: “você sabe com quem está falando?!”. Do fiscal de trânsito ao delegado mais próximo, do pastor que expulsa o demônio ao professor universitário desavisado, do prefeito mais obscuro ao genitor mais descuidado, de um intolerante general dos anos 1960 a 1980 a algum aventureiro parlamentar contemporâneo, a frase impõe autoritarismo e dominação que percorre gerações. Hoje, por certo, continua sendo dita por alguns patrões sobre os trabalhadores malpagos e pelos latifundiários ameaçadores sobre os que lutam pela terra.
Quantos dos que já descansam nos campos-santos de nossa terra não as ouviram antes de nós? Alguns dos nossos, dos que foram e ainda não descansam, ainda não são “poeira ou folha levada nos ventos da madrugada”, pois aqueles que sabiam o que faziam o fizeram tão bem-feito que os corpos dos supliciados ainda agora não foram encontrados, e seus assassinos continuam livres a ameaçar: “vocês sabem com quem estão falando?!”.
Curiosas manifestações de rua de março e abril deste perturbador 2015 – que se pretendem um “novo tipo de movimento” –, ainda saudando como heroico o tempo do “cala a boca” e da ordem do “fica quieto”, além de exigir, descontroladas, o fim da pedagogia do diálogo, a procrastinação da didática da dúvida, a proibição da educação capaz de tornar cada um e todos os seres humanos sabedores de si e dos outros.
Curioso mundo o dos benefícios que, desde a “Casa Grande” do período colonial, recusa aos outros a condição de bem viver e o direito inalienável de manifestar o seu pensar. Estranha cultura na qual aqueles que determinam as normas, as leis e os processos não conseguem suportar os resultados que, de tempos em tempos, nascem dessas próprias normas, leis e processos.
Surpreendente cultura que mesmo num tempo urbano, por si mesmo plural e múltiplo, pretenda permanecer monocórdica num pensamento único, de si mesmo vazio e pleno de discriminação. Mesmo quando a herança do latifúndio se moderniza, transformando-se em agronegócio e ampliando o uso das tecnologias agropastoris, o setor agrário não abre mão do controle da propriedade da terra, recusa as iniciativas de reforma agrária e impõe sua vontade com uma violência crescente contra a qual o sistema judiciário permanece insensível.
Discriminações que, vindas de um passado não tão distante, teimam em permanecer vivas, insistindo em assumir formas contemporâneas no afã de preservar os benefícios do passado sem abandonar as “benesses” do presente. O que talvez não possam ser suportadas são as mudanças cada vez mais rápidas de um tempo histórico que se anuncia cada vez mais veloz – velocidade que cruza o planeta em segundos, nas infovias digitais dos novos sistemas de informação – e que rompe a barreira do som, quebrando, também, a camada de ozônio e carregando a morte em agilidade estonteante.
Discriminações que, alheias às mudanças do presente, insistem em permanecer no tempo em busca de manter e ampliar privilégios e revigorar conceitos formados desde o período colonial. Isso faz com que a Casa Grande se preserve no mundo urbano. Os meios de comunicação servem como instrumentos de divulgação permanente das leituras de mundo incompatíveis com a democracia. Por meio das imagens coloridas das grandes redes universais de comunicação, impõem projetos que oscilam entre a preservação do passado e um futuro indefinido. Nelas, retratam-se os lugares de cada um: benefícios para poucos elegantes e sofisticados, carências e dores para não brancos ou brancos esquecidos.
Ali, define-se, previamente, a condição de culpados e inocentese de quem tem, ou não, acesso à justiça, bem como quem são os criminosos e quais são as suas penas. As telas coloridas atribuem previamente a gravidade dos crimes – na sua maioria, contra a propriedade. São nelas, também, mais do que nos santos das igrejas, que se definem as estéticas do belo e os comportamentos que podem ser eticamente aceitáveis ou hediondamente recusados. É ali, especialmente, que se determina quem são os bons e quem são – em claro revigoramento do maniqueísmo medieval – aqueles que representam tiranicamente os maus.
Estranhos tempos que permitem, inclusive, a segregação pública que pré-julga crianças e adolescentes, estigmatizando-os como seres do mal e condenando-os, desde muito jovens, ao cárcere ou a ocupações – de curta duração e curta vida – na economia do crime.
Estranha cultura urbana que carrega ainda intactos os conceitos vindos de um sistema comandado pelos “senhores de terra”. Homens brancos que se julgavam proprietários das mulheres e de outros homens e carregavam consigo a pretensão de serem os executores da justiça, os proprietários de todas as formas da vida e, mais que tudo, consideravam-se donos do Estado.
Estranha herança de conceitos que pré-definem destinos e de conceitos políticos que ainda permitem aos eleitos se considerarem absolutos nos mandatos que lhes foram cedidos pelos eleitores. Agem como se ainda vivessem nos tempos em que os reis se consideravam os únicos soberanos, os senhores de vontade absoluta.
Os preconceitos tornam-se obstáculos que buscam impedir as transformações que a sociedade exige. Transformam-se em formas de pensar que servem como elementos conservadores (CHAUÍ, 1996) capazes de submeter os dominados à cultura dominante, entendendo que nelas se encontram seguros e beneficiados, mesmo que para tanto precisem abrir mão de seus sonhos e de seus direitos.
O preconceito assume forma política quando se manifesta por meio de formas de perversão e de violência simbólica; quando ofende indivíduos, classes ou grupos sociais, submetendo-os a humilhações e tendo recusadas as suas possibilidades de felicidade; e quando se manifesta no campo da negação dos direitos individuais e coletivos. Assume formas ideológicas quando comerciais permanentemente repetidos nos meios de comunicação remetem a uma congelante bebida ou quando um automóvel novo humilha aquele que tem carro velho. (BUCCI, 1996).
Assim, pensam poder definir as vontades amorosas, as escolhas religiosas, as filiações das mais distintas formas de pensamento. Recusam, revivendo as formas políticas vindas do século XIV, os direitos sociais e políticos que o século XVIII já definira como de todos e de cada um. Ainda agora continuam incapazes de compreender que a forma de viver da sociedade contemporânea é produzida cotidianamente por um duplo movimento, ao mesmo tempo individual e coletivo, que se configura em uma busca social que revela a cada instante um novo interesse, um inesperado desejo. Interesses e desejos que anunciam em cada canto, em cada praça – não aquelas como a dos Moinhos de Vento –, que as sociedades contemporâneas buscam romper com conceitos oriundos dos privilégios sociais e econômicos e das distintas formas de dominação ideológica, política e jurídica.
Entre os muitos preconceitos que os movimentos de março e abril de 2015 recuperaram, um deles era originado de uma das vertentes do pensamento europeu, que se formou ao longo dos séculos XVI a XVIII e que ressurgiu com cores novas no século XX, anunciando que a cidadania se consolida com o mercado livre, e não através de direitos sociais e políticos. Assim, as praças recuperavam o antigo discurso de que o mercado é sérioe produtivo, e o social, perdulário e esbanjador. (RIBEIRO, 2000).
Tais razões reavivam as críticas feitas aos direitos humanos. Críticas constantes desde que alguns setores sociais passaram a denunciar os crimes da ditadura militar com base na defesa da vida. A pedagogia do medo dos governos militares abria um flanco que deslocava os direitos humanos de lugar, de tal maneira que deixavam de ser a justificativa plausível para a quebra do regime democrático para passar a ser sinônimo de lutas pela democracia e de movimentos pela igualdade e pelo respeito às diferenças.
Em busca dos direitos
O Brasil começou a discutir os princípios dos direitos humanos tardiamente e, da mesma forma que em todos os lugares, como um campo de conflito. Não que a sociedade brasileira não houvesse vivenciado, ao longo de sua história, as disputas entre privilégios e direitos, mas porque a hegemonia dos privilegiados sempre procurou impedir que a sociedade assumisse que a condição humana depende para sua efetivação que cada um, cada grupo e cada classe sejam reconhecidos como seres de direitos.
Mesmo após a proclamação da República – sistema que atribui a soberania a todos os cidadãos –, os princípios dos direitos humanos não eram parte da cultura nacional. Nos movimentos sociais, por exemplo, as greves operárias apresentavam reivindicações sociais e econômicas, como luta por melhores salários, jornada de trabalho menor, férias e descanso semanal; e também reivindicações políticas, como liberdade de pensamento e direito de organização sindical e partidária, enquanto o Estado reprimia as greves e prendia e extraditava lideranças operárias, considerando as questões sociais como questões de polícia. Atitudes que seguidamente são repetidas na atualidade por governos estaduais, independentemente das siglas dos partidos às quais os governantes se vinculam.
Mesmo quando o governo brasileiro assinou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), a sociedade brasileira continuou a desconhecer os princípios desses direitos e dessa declaração. Somente na segunda metade do século passado, o tema passou a ser projetado como alternativa de modelo social e político e, curiosamente, colocado a serviço das ações que tinham como objetivo romper a estabilidade democrática.
Somente após ser acenada como bandeira de liberdade e declarada como oposição ao “comunismo ateu” é que os princípios dos direitos humanos foram incorporados ao projeto político-militar, que resultou no golpe de Estado e em consequente deposição do governo constitucionalmente eleito de João Goulart. Estranha forma de emergir nos embates de uma nação, cuja história está mais voltada ao privilégio e à negação da cidadania. Incoerente se seguirmos os pressupostos de Bobbio (1992), que considera a democracia essencial para a vigência dos direitos humanos, e estes como sinônimo de democracia.
Talvez por ironia ou por uma incompreensão histórica, os fundamentos dos direitos humanos chegaram ao Brasil como uma promessa que não poderia ser efetivada. Desembarcou na embaixada americana, acompanhada de outra promessa, a presença da 7ª Frota, pronta para intervir se o avanço militar saído de Minas Gerais não obtivesse êxito.
Chegou acompanhada, também, por fartos financiamentos do capital internacional sempre que fossem utilizados para a instalação de empresas vindas do norte da América, da Europa ou do Japão. O compromisso dos golpistas – interventores para os coloridos manifestantes das praças de março – seria de suprimir, a qualquer custo, os movimentos sociais que começavam a assumir protagonismo histórico antes de 1º de abril de 1964.
Foi exatamente porque a sociedade brasileira pagou um custo insuportável pela perda de liberdade e das vidas através da dor que as sementes lançadas por mãos dispostas a encobrir a verdade fizeram com que os princípios dos direitos humanos mudassem de rota. Os novos rumos dos direitos humanos tentaram criar raízes mais profundas em defesa da vida e da liberdade, como fundamento essencial, sem as quais a humanidade não tem razão de existir e, também, através do sonho inextinguível da igualdade, sem a qual nenhuma alternativa de justiça social pode ser transformada em política pública.
Acompanhando as manifestações do bairro Moinhos de Vento, compreendo melhor as reações que as grandes mídias passaram a ter, desde o momento em que os defensores dos direitos humanos alteraram a trajetória histórica, em relação ao significado das declarações – tanto da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos como da Declaração Universal de 1948 – para a sociedade brasileira.
Desde então – talvez por orientações das editorias, talvez por convicções dos próprios jornalistas –, até neste estranho 2015 é corriqueiro e diário ouvirpregações ora moderadas, ora raivosas contra os defensores dos direitos humanos. Esses discursos que já os rotulavam de protetores de subversivos e de terroristas durante a ditadura e que passaram a ser reconhecidos depois da redemocratização como “defensores” daqueles que, por um motivo ou outro, infringem as leis, mais recentemente, passaram também a ser apontados como defensores Black Blocs.
Campos de disputa, os princípios dos direitos humanos – e as ações daqueles que os defendem – são compreendidos de forma ambígua pela população. Muitas vezes, são tratados com preconceito. No Brasil, há pessoas que […]
[…] detestam os que trabalham pelos direitos humanos e falam em justiça social. Isso porque pensam que essa pregação põe em risco o patrimônio dos que desfrutam de melhor condição econômica. Mas ninguém confessa que este é o verdadeiro motivo […].(DALLARI, 1996, p. 90).
Nos primeiros anos deste inquieto século XXI, podemos acompanhar uma tentativa vinda do Rio de Janeiro que anunciava um contrassenso. Cansados de combater a nova leitura dos direitos humanos, essa iniciativa pretendia uma nova discriminação: os direitos humanos deveriam ser para os “humanos direitos”.
Curioso nome de um movimento capaz de compreender a diferença – própria da condição humana – não como um complemento da igualdade, mas como uma porta estandarte da segregação e do preconceito. Um movimento incapaz de compreender a liberdade não só como a expressão da liberdade de mercado, mas também como de todas as liberdades, inclusive daquelas que recusam todas as formas de tirania. Uma liberdade que permita compreender que as manifestações de março e abril só se tornam possíveis fora dos esquemas políticos autoritários.
Quando os direitos humanos servem unicamente aos “humanos direitos”, o que é negado aos demais não é somente seus direitos culturais. Essencialmente, são negados os direitos sociais e políticos. Os direitos culturais já são negados cotidianamente nos editoriais do jornalismo eletrônico das grandes redes de comunicação. Quando uma sociedade é submetida à intervenção militar, e a história demonstra a frequência com que isto ocorre, tanto indivíduos como grupos e classes têm suas identidades negadas a partir da destruição da integridade psíquica, física e cidadã. Sob um governo ditatorial, a vontade do Estado se impõe não só vetando diferentes manifestações culturais, mas preservando seus privilégios. Esses regimes selvagens sobrevivem “[…] pela tortura, pelo poder das armas e pela morte.”. (EAGLETON, 2011, p. 144).
Inquietantes, as manifestações de março e abril conseguem demonstrar, ao mesmo tempo, o justo desejo de combater a corrupção e a ingênua vontade de arrumar o país por meio do autoritarismo sem disfarces e da negação da cidadania, apregoando o fim da democracia como solução universal. Durante a manifestação do mês de abril, uma grande rede de televisão, que transmitia ao vivo a manifestação durante todo o domingo, localizou um reconhecido torturador em uma manifestação da Av. Paulista e o colocou no ar – uma situação inusitada. O personagem das mais terríveis páginas da história nacional era saudado por manifestantes como um provável salvador da pátria. Com o microfone colocado à disposição, reconhecia, publicamente, ter cometido um erro: ter deixado de matar, quando podia, fulano e beltrana.
Saudada publicamente, a face da morte sorria zombeteira acompanhada do espectro das torturas. Implícita, a tortura era libertada dos porões da Rua Tutóia. Aliás, é sempre bom lembrar que a tortura é considerada pela Constituição Nacional – e condenada pelas Nações Unidas – como crime hediondo. Sua prática não só objetiva destruir o corpo e a psique do torturado, mas, acima disso, eliminar os direitos e igualar as sociedades que a sofrem em uma dor comum que violenta a cidadania e a dignidade humana.
DH entre negações e limites
Embora os crimes contra a humanidade tenham possibilitado uma releitura dos direitos humanos pela sociedade brasileira, seus pressupostos e suas propostas não deixaram de ser um campo de conflitos no qual estão presentes não só aqueles que os defendem, mas também aqueles que os negam. Sua polissemia faz com que se efetivem em um sem número de movimentos com suas propostas e suas identidades, e inúmeras vezes dificultando a criação de uma cultura comum de direitos humanos. Para Willians (2011), uma cultura comum exige uma ética que estabeleça responsabilidade para todos. Uma ética que se manifesta por meio da participação democrática em todos os campos da vida social e o acesso equânime ao processo de produção material e social.
A presença dos direitos humanos foi decisiva para a superação da ditadura militar. A defesa intransigente dos direitos civis e políticos moveu as lutas a favor da abertura democrática, da anistia ampla e irrestrita, da convocação de uma Constituinte Exclusiva e das eleições diretas para denunciar as torturas e ir contra a censura. As lutas pela recuperação da dignidade de vida, após os 21 anos de arrocho salarial e de diferentes tipos de carência, foram constituídas em nome dos direitos sociais e econômicos. Nelas, projetaram-se movimentos pela moradia, o movimento contra a carestia, o movimento dos sem-teto e o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Naquele período, as praças do Brasil, ainda indecisas e sem terem certeza de aonde poderiam chegar,anunciavam a possibilidade de uma cultura comum que envolveria uma participação plena dos que se mobilizavam em busca da superação da dor e do medo.
As praças de então – por certo não a dos Moinhos de Vento – apresentavam-se com faixas dizendo outras palavras de ordem. Sempre havia uma entre elas que bradava: “abaixo a ditadura”. Foi nesse período que surgiram, também, outros temas próprios da contemporaneidade, como as lutas em defesa do meio ambiente, as lutas que anunciavam que “qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar”. (NASCIMENTO, 1975). Foi nessa conjuntura que se aprofundaram as lutas pela igualdade racial e se consolidaram os movimentos feministas, cada um deles com pautas específicas e dispostos a ocupar um lugar que a cultura hegemônica – a cultura que é formada pelos setores sociais dominantes – sempre lhes negara.
Quando olho os cartazes das manifestações de abril, sou levado a pensar que, outra vez, a forma de compreensão do mundo das elites busca sua preservação, tratando-a como a única capaz de produzir a sustentação não só de si mesma, mas de toda a sociedade. Relembre-se, por exemplo, o cartaz carregado por uma mulher – que, possivelmente, conhece os justos argumentos em que se baseiam os movimentos feministas – afirmando aceitar a violência máxima contra as mulheres como se esse fosse um privilégio próprio da condição masculina, o que, por si só, negaria o direito da integridade física de mulheres de todas as idades.
Quando procuro dados sobre os indicadores sociais que identificam as vítimas da violência social e os inacreditáveis números de jovens negros assassinados por armas de fogo e de população negra encarcerada, percebo que a segregação racial não terminou com a escravidão; apenas assumiu novas formas na sociedade urbana.
Tanto no exemplo das lutas pelos direitos de gênero quanto nas questões raciais, pode-se observar que os movimentos sociais das décadas de 1980 e 1990 abriram caminhos, mas os problemas que denunciaram continuam atuais e distantes de solução. Talvez porque as questões próprias da diferença se agucem sempre que as desigualdades sociais eliminam a possibilidade de justiça social. Talvez, também, porque a incapacidade de superarmos a pobreza extrema exige que os setores dominantes continuem a difundir promessas vãs e a iludir a sociedade com sonhos de igualdade, enquanto o Estado se coloca a serviço do mercado hipertrofiado.
Tão imensas eram as urgências dessas múltiplas expressões dos direitos humanos que cada um dos movimentos se preocupou em cuidar de si. Poucas foram as vezes em que os movimentos por direitos humanos assumiram a dimensão universal de seus princípios. As aproximações sempre foram tímidas, e não raro as tentativas de elaborar e implantar políticas públicas deixadas a cargo do Estado, sem que sobre ele fossem exercidas pressões sociais, demonstraram-se insuficientes para superar as gigantescas distâncias econômicas e sociais que separam a sociedade brasileira.
Distâncias que impedem a cidadania de se constituir em pé de igualdade, dificultando, quando não impedindo, que se produza uma cultura comum de direitos humanos, na qual a tríade originada no início da contemporaneidade – liberdade, igualdade e fraternidade – seja acrescida dos novos direitos, entre eles o direito ao reconhecimento das diferenças próprias das condições sociais e culturais e das escolhas individuais e coletivas feitas pela cidadania.
Por fim, uma das questões centrais para que se mude a hegemônica baseada em uma cultura de privilégios para uma cultura fundada nos princípios dos direitos humanos está assentada no papel da “praça pública”. Praças que não são mais unicamente espaços abertos nas cidades, mas que assumem novas formas nesses tempos de tecnologias virtuais e que possibilitam ampla participação política via redes sociais – as praças das infovias; praças que poderão potencializar a participação social desde que canalizem sua energia tão veloz – não para a manifestação de diferentes tipos de ódio e preconceito, mas para a construção de um processo democrático capaz de contribuir para superar as inúmeras carências econômicas e culturais que a maioria da humanidade ainda vivencia.
A praça – como a ágora da Grécia Antiga –, agora sem discriminações, é o lugar que decide sobre o que produzir, como produzir e como dividir o produzido. A praça é o lugar capaz de decidir sobre prioridades públicas e contenções de despesas. É o lugar de determinar as leis, as responsabilidades e os direitos de cada um e de todos. Na praça, ninguém mais precisa se esconder atrás de um governo que decida sozinho e que seja autoritário, impondo ordens e não exigindo compromissos. A praça, mesmo a dos Moinhos de Vento, capaz de suplantar preconceitos e garantir a solução dentro das normas que ela mesma estabelecer como justas e democráticas. A praça, enfim, que se faça sem privilégios e na qual a população possa caminhar sem medo.
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