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“A VAGA DE ILZVER”, DIREITO DE RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL A PARTIR DA CONSCIÊNCIA NEGRA





Por Ilzver de Matos Oliveira, Doutor em Direito, Yawô de Ogum do Abassá Pilão de Oxaguian, em Aracaju, ativista do movimento negro e de povos de terreiro em Seegipe, recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2018 – Categoria Liberdade Religiosa, do Ministério dos Direitos Humanos


Negras e negros estão sendo sistematicamente impedidos de tomar posse em concursos públicos federais. O Caso mais grave e emblemático dentre todos os denunciados até então no Brasil é o do professor doutor em direito Ilzver de Matos Oliveira, negro, candomblecistas, ativista dos movimentos negro e de terreiro, pesquisador premiado no tema do direito das relações raciais, único negro aprovado no concurso do Edital 11/2019, mas, que, a Universidade Federal de Sergipe - mesmo possuindo inúmeras vagas livres para docentes - nega-se a nomear e empossar, utilizando-se de artifícios administrativos e burocráricos. Artifícios ilegais que fundamentaram o Inquérito Civil Público da 5ª Câmara de Combate à Corrupção e do 1º Ofício de Combate à Corrupção do Ministério Público Federal/Procuradoria da República em Sergipe.


O CASO ILZVER - @avagadeilzver - como ficou conhecido, é hoje o maior caso de racismo institucional dentro de uma Universidade Federal do Brasil e um evidente exemplo do que vem sendo chamado de “Hermenêutica Jurídica da Branquitude”, pelo professor Gleidson Renato Martins Dias, “Fenômeno pelo qual, em qualquer possibilidade de interpretação, quando a matéria refere-se a questões raciais, a interpretação, na enormidade das vezes, prejudicará o avanço do combate ao racismo.” (Ser negro não é superficial - https://sul21.com.br/opiniao/2017/03/ser-negro-nao-e-superficial-por-gleidson-renato-martins-dias/)


Mas, se o direito não consegue, ou não quer, mudar a universidade e a sociedade. Se a universidade e a sociedade não mudam, ou não querem mudar para permitir que o debate sobre ações afirmativas com base em critérios étnico-raciais seja seriamente e permanentemente respeitadas e efetivadas, movimentos sociais negros e pessoas antirracistas precisam fazer isso na universidade e na sociedade toda! Isso é o que se chama de direito de resistência.


José Carlos Buzanello, em sua dissertação “O direito de resistência como problema constitucional”, diz que o Direito de Resistência é um Direito Fundamental Atípico, ou seja, não precisa de outorga, ser dado pelo Estado. É, ainda, um Direito Secundário, ou seja, está em favor de um direito primeiro, é sinônimo de direito de defesa. Dentre os Direitos de Resistência está a desobediência civil. Assim, a partir das sete ferramentas de Ogum, orixá que habita meu ori, proponho, neste mês da consciência negra, sete ferramentas de desobediência civil na luta contra as ameaças, descumprimentos e burlas às políticas de ações afirmativas nas universidades:


1 – CRIAÇÃO E COMPOSIÇÃO DAS BANCAS DE HETEROIDENTIFICAÇÃO SEM PESSOAS BRANCAS

A Portaria 04/2018, no seu Art. 6º, parágrafo 4º, diz que “a composição da comissão de heteroidentificação deverá atender ao critério da diversidade, garantindo que seus membros sejam distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade”. E isso fez com que as instituições exigissem a inserção de pessoas brancas nessas comissões.


Eu não entendo porque a interpretação deste dispositivo indica para a inserção de pessoas de raça/cor branca nas comissões de heteroidentificação, a não ser, se o parâmetro interpretativo for a hermenêutica jurídica da branquitude. Na minha interpretação afrocentrada, o “critério de diversidade” exigido pela norma seria perfeitamente possível de ser atendido com a diversidade de gênero, cor e naturalidade de pessoas negras. Imaginem a diversidade de uma banca de heteroidentificação composta assim: mulheres preta cis, mulher parda cis, mulher preta trans, mulher parda trans, homem preto cis, homem pardo cis, homem preto trans, homem pardo trans, pessoas pretas não binárias, pessoas pardas não binárias, mulher negra quilombola, homem negro de terreiro, entre tantas outras identidades negras possíveis, que dispensam a presença de pessoas brancas, que não deveriam ocupar, ao menos este lugar, que, como diz o STF na ADC 41, precisa ser espaço de legitimidade, conhecimento e de controle social da população negra.

Essa é a primeira ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.


2 – QUEBRA DO BENEFÍCIO BRANCO DAS FORMALIDADES EXCESSIVAS PARA AUTODECLARAÇÃO

As formalidades exigidas pelos editais são repetitivas e complexas para, ao meu ver, beneficiarem as pessoas brancas que burlam as políticas de cotas. Exige-se marcar no formulário de inscrição se é preto ou pardo, depois tem que assinar um atestado de autodeclaração, marcar de novo se é preto ou pardo, autenticar em Cartório, juntar foto, vídeo, e no fim, uma vez descobertas, as pessoas brancas reprovadas recorrem, juntam a certidão de nascimento escrito “pardo”, trazem a avó, o avó, o pai ou a mãe do casamento inter-racial e entram na justiça.


Por que precisamos de tantas formalidades para selecionar as pessoas negras destinatárias das políticas de cotas? Na minha visão, as formalidades precisam ser substituídas por medidas estratégicas contra os brancos que burlam as cotas. Parece que o uso do termo pardo nos editais e a técnica da pergunta única para saber a cor/raça do candidato precisam ser repensados. Creio que é preciso adotar unicamente o termo negro, excluindo o termo pardo. Mas, caso a opção siga sendo seguir o critério do IBGE, que não se use o CENSO como modelo, mas, sim, a Pesquisa das Características Étnico-raciais da População - PCERP - porque nela o entrevistado é indagado com uma série de alternativas de identificação (afro-descendente, indígena, amarelo, negro, branco, preto e pardo) que podem ser assinaladas quantas vezes o entrevistado quiser. Desse modo, adotando essa tecnologia, podemos realizar cruzamentos entre as respostas e excluir os que, por exemplo, declaram-se pardos, para se beneficiar da política de cotas raciais, mas, não se declaram afro-descendentes nem negros, e sim, brancos, o que se chama popularmente de “pardo-branco”, ou seja, um branco oportunista.


Essa é a segunda ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.

3 – ELIMINAÇÃO/EXPULSÃO DOS BRANCOS QUE BURLAM AS COTAS


O "revogaço" de normas do governo atual que vem sendo debatido na transição, nos trouxe a necessidade de pensar a revogação da Portaria sgp/sedgg/me nº 14.635, de 14 de dezembro de 2021, do Ministério da Economia, que alterou a Portaria Normativa SGP/MP nº 4, de 6 de abril de 2018, que regulamenta o procedimento de heteroidentificação em concursos públicos federais.

Essa alteração destruiu o potencial pedagógico da norma, que é de ensinar, através da exclusão do concurso, aquele que o frauda dizendo que é negro, quando não o é. Isso tem gerado onda de concursados reprovados fraudadores "revoltosos" que, a exemplo de Sergipe e do Ceará, pedem, até com apoio de setores públicos, mudanças nas nossas leis estaduais que se baseavam na Portaria n.º 4. Essa Portaria nº 14.635 é uma marca perigosa e destrutiva do governo Bolsonaro na política de cotas raciais.


Vale destacar que alguns órgãos do sistema de justiça têm sido, do mesmo modo que essa alteração normativa, perigosos para os destinos da política de cotas, ao permitirem a continuidade em cargos públicos ou vagas de universidades, de pessoas fraudadoras, dando-lhes o benefício de prestação de serviços por determinado prazo após formados, sob justificativa de menos danos ao investimento público e sem pensar na política de cotas. Isso é mais um evidente caso de aplicação da hermenêutica jurídica da branquitude.

Essa é a terceira ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.


4 – EXTINÇÃO DA BANCA RECURSAL E RECONHECIMENTO DA SOBERANIA DA BANCA DE HETEROIDENTIFICAÇÃO


A banca de heteroidentificação é soberana! Soberana! Assim como o STF - que só ele pode mudar suas próprias decisões - deve ser assim com a banca de heteroidentificação. Somente ela pode rever e reconsiderar suas decisões. E isso garante a possibilidade de recurso, que está na letra da Orientação Normativa 3 e o direito ao contraditório e à ampla defesa da Constituição Federal de 1988. Mas, a meu ver, essa operação deveria ser tratada como um pedido de reconsideração, não como recurso.

Por fim, defendo que não há razão para banca recursal porque não deve haver hierarquização entre uma primeira banca e uma segunda, nas políticas de fiscalização da autodeclaração racial, como se uma fosse mais importante que outra ou seus componentes fossem mais e melhor qualificados. Isso é mais um exemplo da hermenêutica jurídica da branquitude.

Manter esse “duplo grau de jurisdição” deprecia ou desqualifica a existência e o trabalho da banca inicial e é um elemento que - para a sociedade racista brasileira que até hoje não admitiu tais políticas com base em critérios raciais - serve como estímulo a polêmicas que só prejudicam as políticas de ações afirmativas, como é a colocação de dúvidas sobre a eficiência do trabalho das bancas de heteroidentificação.

Essa é a quarta ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.


5 – QUEBRA DO SIGILO DE PARECERES, IMAGENS E NOMES DOS MEMBROS DA BANCA DE HETEROIDENTIFICAÇÃO/CONTROLE SOCIAL DAS FRAUDES


O estágio atual do desenvolvimento das normas constitucionais, da legislação sobre acesso à informação de interesse público e participação democrática impede compreender qual a lógica dessas previsões de sigilo, a não ser a lógica da hermenêutica jurídica da branquitude. Algumas perguntas podem ajudar a entender essa afirmação:

Pertencimento étnico-racial é uma informação sensível? Pela leitura da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a resposta é não, pois ela fala de “origem racial ou étnica”, e sabemos da importância dos dados sobre cor/raça para as políticas públicas.

Outra pergunta se impõe, na sequência da anterior: A gravação da banca é uma informação de interesse público? Se órgãos públicos estão produzindo informações públicas sobre seus atos administrativos, eles devem ser públicos e permitir o controle social sobre eles.

Por fim, uma última pergunta deve ser feita diante da preocupação da norma em não expor o nome dos membros da banca, mas, apenas seus currículos: Há riscos pessoais em ser membro das bancas de heteroidentificação? Há casos de perseguição a membros?

Se essa resposta for positiva, precisamos ampliar de forma decisiva e irrevogável essa desobediência! Porque uma legislação não pode admitir a violência racista como algo normal e superável através de um sigilo frágil, como é o proposto por ela, mas, por outro lado, deve enfrenta-la e reagir seriamente a ela. Essa normalização da opressão racista em forma de ódio e violência é típica da hermenêutica jurídica da branquitude, não sejamos iludidos por ela.

Essa é a quinta ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.


6 – INVESTIGAÇÃO E PUNIÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS POR CRIMES DE IMPROBIDADE E DESVIO DE FINALIDADE NA APLICAÇÃO DA LEI DE COTAS


A omissão na fiscalização do sistema de cotas por parte dos agentes públicos, além de configurar ato de improbidade administrativa por violação de princípio, caracteriza explícito desvio de finalidade, que ocorre nas hipóteses em que o ato administrativo é praticado em descompasso com os objetivos estabelecido pelo legislador, constituindo, assim, violação ideológica da lei. Reitores, Pró-reitores, servidores, dentre outros, são passíveis de responsabilização. Cabe a nós estruturarmos, junto com órgãos públicos, a fiscalização da atuação de gestores e gestoras públicos na temática das cotas raciais nas universidades.

As Universidades comumente gerem um dos maiores orçamentos nos estados onde estão, a Universidade Federal de Sergipe, por exemplo, tem um orçamento de mais de 774 milhões, o terceiro maior orçamento do Estado de Sergipe. O orçamento da UFS é maior que o orçamento de 2022 da cidade de Teresópolis – Rio de Janeiro, que tem quase 200 mil habitantes. Grande parte desse orçamento da UFS é gasto com despesas de pessoal e cargos, e esse dinheiro público, dos impostos de pessoas negras sergipanas como eu, maioria da população do Estado que é de 80% (quarto mais negro do Nordeste) não pode ser destinado para pessoas que burlam a implementação das cotas raciais e elas não podem seguir inatingíveis em seu cargo cometendo tais ilicitudes.

Essa é a sexta ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.


7 – REVERTER O DEBATE PÚBLICO SOBRE O SUPOSTO FIM DA LEI DE COTAS


A origem das cotas raciais nas universidades se deu pelo uso da autonomia universitária e por desejarem ser vistas como antirracistas, num momento efervescente do debate sobre reparação da escravidão no período após a Conferência de Durban, de 2001, na África do Sul. Não começaram por leis. Por isso cabe mais uma pergunta nessa conversa: se as leis forem revogadas, as universidades serão antirracistas o suficiente para resistirem e seguirem com as cotas como política? Praticarão desobediência civil se for necessário?

Enquanto elas não respondem, precisamos substituir o medo do fim das leis de cotas pela coragem de exigir posicionamento público e documentado das universidades sobre o compromisso de manter, ampliar e efetivar as cotas raciais com o uso da sua autonomia e em quaisquer tempos, sejam de retrocesso ou progressistas, não importa.

Essa é a sétima ferramenta que Ogum nos dá para a desobediência civil contra a burla às cotas raciais.

É isso! Que nesse dia da Consciência Negra sigamos aprendendo com Ogum a lutar e resistir a tudo, até mesmo à morte, seja ela dos nossos direitos ou dos nossos corpos, mas, a, também, ocupar os espaços que devem ser nossos e desfrutar deles de uma vez por todas, coisa que os brancos fazem tranquilamente, sem contestações, há séculos nesse país, enquanto nos relegam ao lugar de sempre lutar sem nunca alcançar.


ORIKI DE OGUM

Ògún onílé (I)kú (Ògún, Senhor da morada da Morte)

Ògún ma ṣe àwa lù Ikú (Ògún não permita que a morte nos atinja)


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