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Maternidade, afetos, política e reprodução




Por Christiane Ribeiro Gonçalves: psicóloga, mãe, feminista e diretora da Fábrica de Imagens


Pela proximidade ao dia das mães, fui solicitada a escrever um texto sobre maternidade e outras reflexões. Confesso que se passou quase uma semana e nada interessante me vinha à cabeça. Eu só conseguia pensar nas mães que já perderam filhas/os, nas/os filhas/os que perderam suas mães, nas mães solo, nas mães deixadas aos cuidados de profissionais em casa ou em abrigos, nas mães negras, indígenas, nas mães empobrecidas, nas mães que não escolheram ser mães, nas mães que tiveram filhas/os, mas por inúmeros motivos que não cabe a mim relacionar/julgar, as/os rechaçaram, preteriram, mataram fisicamente e/ou em vida, nas mães que adotam, nas mães lésbicas e trans, apontadas por uma sociedade extremamente moralista, naquelas mulheres que abortaram e naquelas que nunca quiseram mesmo gerar/parir e são hostilizadas cotidianamente por essa mesma sociedade, nas mães da periferia, da Candelária, do Curió, do Jacarezinho (...) e, ainda, em todos os medos, solidão, culpas, limites, exaustão, dores e amores de todas essas mulheres.


São muitos os sentimentos contraditórios para mim, uma mulher que escolheu maternar. De um lado, vem uma enxurrada de mensagens com o intuito de nos emocionarem e, de outro, as referências, que se repetem a cada ano, a um modelo de “maternidade ideal”, resiliente, cuidadora, cheia de amor incondicional, pureza, uma dedicação incansável, guerreira e, obviamente, irreal, estereotipada e com as mais diversas sobrecargas impostas às mulheres-mães. Uma maternidade de “comercial de margarina”, feliz, branca, de classe média, heterossexual, bela segundo os padrões sociais, maquiada no café da manhã, produtiva, bem-sucedida, disposta.


E aí me dou conta que, além de todas as violências que nós mulheres vivenciamos no nosso dia a dia, esta imposição social de uma maternidade desejada e perfeita, é mais uma violência que recai sobre nossos corpos e nossas vidas.


Muitas vezes me peguei desejando ser como minha mãe e me sentia extremamente culpada porque eu nunca consegui acordar às 5h, fazer uma atividade física e dar conta de várias demandas domésticas, do filho e dos gatos, antes de sair para trabalhar, passar o dia fora e chegar em casa ainda plena e, depois de tudo, ainda ter disposição para fazer minhas leituras, estudar. E olha que tenho um companheiro que sempre dividiu todas as tarefas comigo. Ainda assim, aquele modelo que cresci vendo e que é o mais valorizado socialmente, permanece incrustado na maioria de nós, mesmo que todo senso de realidade aponte para a insustentabilidade desse modelo.


E por quê?


Aqui precisamos nos distanciar um pouco das perspectivas mais usuais da noção de maternidade e também de mulher. Aquelas que desistoricizam, naturalizam e ornam esse fenômeno com signos e significados atemporais, absolutos, divinos.


O que há de natural na maternidade é o fato de uma pessoa, ao ser inseminada, gestar e parir. Todo o resto, que não é pouca coisa, é construído socialmente. Aliás, até mesmo o “processo natural” pode sofrer variações pelas modernas técnicas reprodutivas. E é nesse campo do socialmente construído que nos deparamos com as efetivas condições materiais de existência, de produção e reprodução, tanto no nível dos corpos, quanto dos pensamentos, das ideologias e até mesmo dos afetos.


Numa sociedade capitalista, como a que sobrevivemos, os corpos têm funções e estas devem estar a serviço da reprodução dos signos e significados (ou produção de outros) que a legitimem e justifiquem e, simultaneamente, produzir outros corpos para a produção das condições materiais de existência, máximas para a burguesia, e mínimas para a grande massa de outras pessoas, empobrecidas, exploradas, espoliadas.


Numa divisão de trabalho que garantisse esse estado “funcional” de sociedade, às mulheres foi imputada a obrigatoriedade da produção dos corpos para o mercado e da reprodução das condições materiais e subjetivas no âmbito privado que servissem de suporte para a produção das riquezas produzidas no espaço público e por homens.


Assim, não é difícil percebermos o muito que há de social, político e econômico no fenômeno da maternidade. A ideia construída de homem e mulher e, por conseguinte, paternidade e maternidade, é um reflexo das relações de gênero, que são essencialmente relações de poder, que colocam as mulheres e as mães num lugar secundário, de suporte, de sustentação e os homens como protagonistas da história.


Nesse contexto de tanta desigualdade, talvez tenha sido a divinização da mulher-mãe, sua sacralização e sua instituição no campo do imaterial, do incondicional, do atemporal, do espiritual, que tenha contribuído para mulheres, mães ou não mães, não se rebelarem mais e de modo mais pungente. Vendeu-se para as mulheres-mães o imaterial como mais importante, para subtrair-lhes qualquer desejo de materialidade.


Maternidade é desejo, é um ato político (como tudo na vida) e pode ser afeto! E como ouvi de uma amiga virtual esses dias: “Você não é a sua mãe, não é a mãe da sua mãe, não é a mãe do comercial de TV e nem a mãe que sua amiga é... Seja a mãe que você consegue e acolha a mãe que você tem/teve.”

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