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Festa da moça: a travestilidade nas festas de Dona Pombagira

por JEAN SOUZA DOS ANJOS Teólogo e graduando em Ciências Sociais (UFC/LAI)

Este artigo foi escrito em 2015 e está nos Anais do IV Seminário Gênero Cultura e Mudança, do Curta O Gênero

RESUMO/ ABSTRACT

O artigo discorre sobre as observações preliminares sobre a travestilidade na Festa de Dona Pombagira em Terreiro de Umbanda em Fortaleza. São colocadas algumas questões para a pesquisa e os desafios enfrentados no trabalho de campo. Através da percepção e do registro audiovisual, o autor considera a pesquisa necessária para compreender questões de cultura e gênero dentro dos terreiros onde predominam a pluralidade e a diversidade das tradições afro-brasileiras.


The article discusses the preliminary observations about transvestite people at the Dona Pombagira’s Party in the Terreiros of Umbanda in Fortaleza. Some questions were made for the research and the challenges faced in the work field. Through awareness and audiovisual record, the author considers the research necessary to understand gender issues and culture within the Terreiros where the plurality and diversity of african-Brazilian traditions prevail.


INTRODUÇÃO

Esse trabalho refere-se às observações preliminares de questões ligadas ao corpo e ao gênero nos terreiros de Umbanda de Fortaleza. Aqui venho realizar um breve relato especificamente da Festa de Dona Pombagira no Terreiro Cabana do Preto Velho da Mata Escura fundado em 10 de agosto de 1984 pelo Pai de Santo Valdo. Esse Terreiro fica no bairro Bom Jardim, periferia da cidade de Fortaleza, Estado do Ceará.


Atravessado pelo olhar da Antropologia, situo a festa como um elemento de lugar paradoxal e a considero como rasgadora do tempo cotidiano como bem nos diz Perez (2012),. Dessa forma, a festa religiosa da Umbanda, religião nascida no Brasil no começo do século XX, é um marco realizador entre a experiência religiosa e o fenômeno do transe e da possessão tão já estudados por Birman (1985). É nesse contexto que faço uma breve análise sobre a festa da moça, ou seja, a festa de Dona Pombagira.


Na festa da moça no Terreiro de Pai Valdo, homens se vestem como mulheres para incorporarem as Pombagiras. A festa é rica e os homens usam vestidos com muito brilho, charme e exuberância. Há um desfile de beleza nas festas destinadas para essas entidades cultuadas e reverenciadas na Umbanda. Augras (2009) nos indica que Pombagira é um Exu do sexo feminino e representa a subversão dos valores morais. Quero lembrar aqui do discurso medieval que coloca o corpo da mulher sobre o poder demoníaco e dito isso, me lembro de um discurso machista e misógino ainda nos nossos tempos contemporâneos. As Pombagiras são figuras relacionadas ao imaginário popular como feiticeiras e demônias. Homens que incorporam essas entidades emprestam seus corpos masculinos à representação do feminino mais ousado na Umbanda, para não dizer mais transgressor.


O objetivo desse artigo é refletir sobre esse fenômeno percebendo o que representa essa travestilidade na festa de Dona Pombagira e contribuir para os estudos do imaginário social brasileiro colocando as questões referentes ao gênero em pauta dentro da Antropologia e das Ciências Humanas. Como a pesquisa está em fase inicial, a ideia é apresentar aqui um apanhado de questões sobre as fronteiras do corpo masculino dentro das culturas de terreiros em suas festas religiosas.



Foto: Jean dos Anjos

METODOLOGIA

Para a realização da pesquisa é preciso criar uma intimidade com o Pai de Santo e a comunidade de Terreiro, ou seja, o Povo de Santo. A observação participante, defendida por Silva (2006) é o meu principal método para esse trabalho. Há de se formar uma convivência íntima e prolongada com os informantes para que seja formada uma percepção no olhar do pesquisador. Essa percepção, defendida por Merleau-Ponty (2011), é a referência teórica que mais me aproximo para compreender a essência da existência humana, suas nuances e contradições.


Outrossim, uso uma câmera fotográfica para registrar, quando autorizado, as festas dos Terreiros. No caso da Festa de Dona Pombagira, me foi autorizado fotografar e filmar. A imagem é cara à Antropologia e à observação participante. Lembro que o próprio Malinowisk fez uso das imagens em suas pesquisas nas Ilhas Trobriand. Margaret Mead também fez uso da Antropologia Visual em seus trabalhos etnográficos. Dessa forma quero seguir esses teóricos que tanto contribuíram e contribuem para o fazer antropológico e etnográfico realizando uma pesquisa com os dois pés na observação participante e uma câmera fotográfica na mão.


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No dia 14 de agosto de 2008, perto de meia noite, me encontrei com uma figura inusitada na beira da Praia do Futuro, em Fortaleza. Era Maria José, uma Pombagira que estava ali pra a Festa de Iemanjá. Mazé estava incorporada no Pai de Santo Antonio e estava rodeada de pessoas com quem conversava, ria alto e bebia cerveja. Eu não sabia quem era ela e fui apresentado à Pombagira por um amigo que frequentava o Terreiro do Pai Antonio. Mazé me fitou da cabeça aos pés e disse que eu era bonito. Eu agradeci, fiquei um pouco escutando as conversas daquela mulher e depois fui embora. Era o começo de um fascínio que eu iria dedicar às Pombagiras da Umbanda cearense.


No dia 15 de agosto daquele mesmo ano e naquela mesma praia, tive a oportunidade de conhecer Pai Antonio, um senhor casado e pai de família. Não posso negar a minha surpresa quando soube que Pai Antonio era casado com mulher, naquela época meus preconceitos me diziam que aquele homem deveria ser homossexual e naturalmente, se fosse casado, seria com um homem. Esse foi o primeiro vacilo do pesquisador de religiões afro-brasileiras que pouco entendia de gênero e sexualidade e ainda carregava em si uma centena de dúvidas e questões sobre o universo da Umbanda. A Festa de Iemanjá na praia do futuro era ali um divisor de águas na minha vida.


Dali em diante a minha presença nos Terreiros de Fortaleza foi marcada por anotações, fotografias, registros de falas e conversas ocasionais com pais e mães de santo, filhos e filhas de santo e com caboclos e caboclas incorporados. Evidentemente, observei e fui observado nas festas de caboclos, índios e pretos velhos. A pesquisa etnográfica é sempre feita em caminhos de mão dupla. Como o meu interesse principal dentro da esfera da religiosidade afro-brasileira é o culto à Iemanjá, meu interesse pelos outros Orixás e entidades da Umbanda sempre ficaram em segundo plano. Somente em 2013, quando fui à Festa da Moça no Bom Jardim despertei para a questão que permeia esse trabalho. Por que nas festas de Pombagira são sempre os homens que incorporam a entidades? Qual o sentido e o significado para esse fenômeno cultural e religioso?


Landes (1967) vem nos falar sobre o matriarcado cultural e a homossexualidade masculina e nos indica os papéis sociais daquela época dentro dos terreiros de Candomblés da Bahia. O papel da pesquisa de Landes é essencial para os estudos de gênero dentro dos terreiros porque coloca em xeque as instancias de poder que são relevantes dentro das instituições religiosas. Assim, a autora explica que homossexuais do submundo baiano são levados a uma reversão de status quando se tornam sacerdotes do Candomblé.


Os clássicos estudos de Mead (2011) sobre as sociedades tradicionais são caros a minha pesquisa. Sobre os inadaptados em Tchambuli, Mead conclui sobre homens desajustados e sujeitos a acessos maníacos, histéricos e neurastênicos. As condições culturais, levadas em primeiro plano nos estudos da antropóloga, mostram sociedades onde os dotes humanos desenvolvem comportamentos padrões e contrastantes reconhecidos não somente pela sexualidade biologizante, mas por traços e códigos éticos e simbolismos sociais. Eu completo o pensamento de Mead com uma ponte para o fenômeno religioso e as crenças desenvolvidas pelos adeptos da Umbanda.


E se a Umbanda bebe das tradições religiosas da África, Le Breton (2012) nos lembra que o homem e a mulher africana estão imersos no seio do cosmos, de sua comunidade e eles participam da linhagem de seus ancestrais e de seus universos ecológicos. Existe uma conexão mais que afetiva nas cosmologias africanas. As conexões das relações corpóreas com as ancestralidades são um princípio existencial da condição humana de africanos e africanas. Tudo isso para dizer que as religiosidades afro-brasileiras fogem da compreensão analítica de um pesquisador branco e de origem católica romana, como eu. Há muito chão pela frente para uma pesquisa efetivamente conclusiva.


Daqui em diante sigo dois caminhos. O primeiro é alicerçado pela relação do individuo com o seu Guia (no caso, Dona Pombagira), o que detonará todo o sentido existencial dentro da cosmovisão que a Umbanda reverbera. Esse primeiro caminho segue através da Fenomenologia da Religião e tratará da experiência religiosa em si. O segundo caminho, mais ousado para mim, discutirá as relações de gênero dentro da celebração religiosa, ou seja, a prática da travestilidade como uma transgressão dentro do terreiro naquela Festa de Pombagira. É desejo meu que esses caminhos de encontrem no avançar da pesquisa. Assumo o caráter problemático nas questões da possessão que é indiscutivelmente tratada com desdém alguns setores das Ciências Humanas ocidentais e abomino tratar a pesquisa com o olhar exótico daqueles que se colocam como superiores àquelas tradições culturais e religiosas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperar o resultado de uma pesquisa é um desafio diário para quem, como eu, se coloca de corpo no campo da observação e da análise. Para as realidades da travestilidade nos Terreiros onde coloco as minhas percepções, me proponho a uma maior interação com aquela manifestação religiosa e cultural que é a Umbanda. Praticamente todos os dias venho analisando entrevistas, fotografias e vídeos feitos ao longo desses anos. A sensação é que nasce todos os dias nas minhas anotações uma floresta de símbolos e rituais secretos. Sigo na tarefa de decifra-los, ou ao menos, compreende-los.


A prática etnográfica a fim de desvendar os mistérios e as vivências humanas que se relacionam com suas crenças sagradas nos mostram uma verdadeira experiência de alteridade com a pesquisa. A Festa da Moça é uma experiência humana da alteridade, isso eu já posso dizer. É uma festa em que a relação é mantida através dos afetos e da caridade de quem se entrega de corpo para a vivência na sua religião.


REFERÊNCIAS

AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009.

BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo: Brasiliense, 1985.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1967.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

PEREZ, Léa Freitas; AMARAL, Leila; MESQUITA, Wania. Orgs. Festa como perspectiva e em perspectiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2012.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo  texto etnográfico na pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

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