Por Andrezza Araújo Queiroz, Psicóloga, integrante da Fábrica de Imagens - ações educativas em cidadania e gênero. Compõe o Fórum Permanente da ONGs pela Defesa dos Direitos das Crianças do Ceará (Fórum DCA Ceará).
Escrever sobre infâncias para mim é sempre uma mistura de sentimentos, fico alegre por ser algo que gosto de ler, estudar, pesquisar e escrever, mas me sinto revoltada quando no processo de escrita vou registrando dados de ‘profundo desrespeito aos direitos deste público. Sensação de impotência surge quando recordo de todo o trabalho contínuo e exaustivo de militância para cobrar e reivindicar o óbvio das políticas estatais. Contudo, consigo finalizar com esperança, algo que encontro nas adversidades do caminho e que, sem querer romantizar, surge quando converso ou brinco no contato direto com as crianças, suas potencialidades no presente me passam a crença de que a luta contra os absurdos impostos pela sociedade adultocêntrica resistirá.
Outra questão que me pega quando vou escrever é o tema específico que devo abordar, posso falar sobre as novas perspectivas/novos estudos sobre infâncias - crianças com opiniões ativas, participativas no cotidiano, que são no presente e não somente projetadas para o futuro, infâncias no plural que consideram os contextos e diversidades das culturas, fugindo de uma infância única e global. Mas também posso redigir sobre as inúmeras violações diárias de direitos de crianças e adolescentes que merecem a atenção coletiva social - trabalho infantil, violência sexual, abandono escolar, abandono parental, desnutrição, violência física. Torna-se super delicado eleger uma temática “única” para abordar.
No entanto, a escolha tem de ser feita.
Neste texto, vou chamar os/as leitores/as para a problemática da orfandade, um tema há muito discutido pelo descuido dos agentes responsáveis em cumprir o tempo estipulado, de no mínimo 2 anos, para finalização do processo da criança e acolhimento desta em uma família. Com a pandemia causada pela COVID-19, o número de órfãos aumentou considerável e rapidamente, as mortes pelo Coronavírus levaram inúmeras mães, pais e/ou responsáveis por menores de 18 anos, deixando uma grande parcela do público infantil sem cuidadores imediatos. Os dados que tive acesso são de abril de 2021, somente no estado do Ceará, em torno de 5,6 mil crianças e adolescentes se tornaram órfãos por conta da contaminação do vírus.
Um número com enorme possibilidade de ter sido triplicado, já que estamos próximo de completar um ano que os dados apresentados foram apurados. Com isso, é de extrema urgência que providências sejam tomadas por parte do poder público, levando em conta uma realidade que vem acontecendo desde o início da pandemia (março de 2020). Passa da hora de serem instaladas políticas públicas para resguardar as crianças e adolescentes nesta situação. Sob os cuidados de quem estão esses órfãos? Como estão frequentando a escola? Como está a sua saúde? Já foram cadastrados e vacinados? Quem deu suporte no momento de luto dos pais? Como estão as relações e convivência entre irmãos, caso tenham? E a alimentação diária?
Essas e inúmeras outras perguntas são pensadas por quem acompanha diariamente a pauta e, infelizmente, não se tem resposta. Haja vista que nenhum mapeamento foi feito para localizar quem e quantas são as crianças e adolescentes que vivem em situação de orfandade. Articulações foram formadas, em 2021, em todo o Brasil e a questão foi levantada no Congresso Nacional durante o relatório da CPI da COVID, com a sugestão de um projeto de lei para criação de uma pensão que beneficiará os chamados “órfãos da COVID”. Senado debateu auxílio, no entanto nada aprovado até agora.
Este projeto de lei, embora urgente, permanece em tramitação. O que deve ser considerado é que a garantia do valor de uma salário mínimo não é suficiente para assegurar que os direitos das crianças e adolescentes nesta situação estejam sendo resguardados. Necessário que se pense em políticas de estado, ou seja ações garantidas e continuadas, sem serem modificadas a cada mudança de governo. Mas que exerçam suporte para os órfãos até a fase adulta.
Além disso, faz-se importante pensar nas maneiras que essas crianças e adolescentes serão recebidos pelas casas de acolhimento, haja vista que a lotação nesses espaços já se apresentava como preocupante. Os processos de adoção tem fama de serem demorados no sistema judicial, prolongando a estadia dos pequenos nas instituições. Com a situação causada pela pandemia, essa demora tende a aumentar e as crianças serão as mais prejudicadas.
A questão dos órfãos da COVID mexe com vários âmbitos da sociedade, não se restringe aos militantes ou profissionais que lidam diretamente com o público infantil, o sistema judiciário, escolas, políticas de assistência, políticas de saúde, saúde mental, políticas de segurança pública e outros terão algum tipo de modificação para lidar com essa problemática social. Indo de encontro com a visão de que as crianças alteram os seus cotidianos por serem presentes e ativas, elas estão nas falas, decisões e opiniões da sua comunidade.
Trazendo a discussão para o cenário local, estado do Ceará, um grupo foi formado para lutar pela pauta da orfandade, levantada pelo coletivo “Movimento Cada Vida Importa” contando com professoras universitárias, militantes pelas infâncias, núcleos universitários, ONGs e simpatizantes com a problemática. Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19 (AOCA) começou em 2021, com lives, discussões em fóruns e publicações sendo realizadas. O Ministério Público do Ceará (MPCE) e mandatos de vereadores e deputados estaduais foram acionados, com objetivo de ganhar visibilidade e apoio do Governo.
A mandata coletiva Nossa Cara e o mandato do vereador Gabriel Aguiar, ambos do Psol, abraçaram a pauta e a levaram junto com projeto de lei para a Câmara dos Vereadores de Fortaleza. O mandato do Deputado Estadual Renato Roseno, também do Psol, apoiou a causa e segue tendo reuniões com demais deputados, os que têm abertura para conversar, com objetivo de defender resoluções a problemática no âmbito estadual.
Em 14 de março de 2022, um ofício assinado pela AOCA e mais de 160 instituições foi protocolado, solicitando em regime de urgência uma audiência com o então Governador do Ceará, Camilo Santana, e atual Prefeito de Fortaleza, José Sarto, na intenção de cobrar medidas rápidas para tratar com a delicada situação das crianças e adolescentes órfãos da COVID. Até a publicação deste escrito, o documento continua sem resposta dos representantes do executivo estadual e municipal, respectivamente. Contudo, as adesões de entidades continuam abertas e crescem a cada dia, pressionando o poder público.
A pauta dos órfãos da COVID é de extrema importância e emergência. Estamos em falta com essas crianças e adolescentes, as ações de suporte já iniciarão com bastante atraso em relação a situação de negligência que este público vem sofrendo. Mais ainda por isso, os Governos dos estados e federal devem dar atenção a urgência desta problemática e tomar medidas cabíveis, conversadas com a sociedade civil.
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