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Decifra-me, eis o desafio

Por Kelma Nunes



No Brasil, apesar de sua diversidade cultural e étnica, a trajetória de constituição da sociedade está inserida no cenário colonialista-expansionista do capitalismo mundial mercantilista do século XV, que tinha como matriz ideológica a conquista de terras e a submissão de povos ditos “primitivos”. Um pensamento dominador, segregativo e seletista-excludente vivido no continente europeu. Esse mesmo paradigma invade o continente africano em busca de riquezas e mão de obra qualificada, pois, a despeito do que a historiografia oficial relata, os africanos eram detentores de grandes conhecimentos em agricultura, pecuária, ferro, mineração e medicina de base natural, para citar algumas. E isso foi o que o colonizador foi buscar em África.


Esse comércio escravista, ao aportar no Brasil, trouxe milhões de negros e negras que contribuíram de forma direta na formação da sociedade brasileira, sendo um dos legados das etnias africanas a resignificação de suas tradições religiosas a partir da instituição dos Terreiros de Matriz Africana, como o Candomblé. Criados como espaços de resistência, eles continuam como referência do povo negro para as lutas cotidianas pela afirmação identitária e contra as expressões de racismo travestida de intolerância.


O Brasil é um país que desde a Constituição de 1891 é um Estado Laico, o que significa que não pode estar atrelado a uma Religião ou privilegiar alguma. A atual Constituição brasileira de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, afirma em seu Artigo 5, Inciso VI: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. A liberdade religiosa é um direito de cidadania e um direito fundamental da humanidade, previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. Mas, apesar dessas garantias, os Terreiros de Matriz Africana são alvo constante de ataques de grupos religiosos fundamentalistas, que, embasados num argumento ínfimo de que nesses espaços se cultua o demônio, assumem para si a tarefa de “evangelizar” os afro-religiosos ao denunciá-los para a sociedade, o que ocorreu em 21 de janeiro de 2000, quando o Terreiro de Mãe Gilda de Ogum, em Salvador, Bahia, foi invadido e sua imagem usada de forma indevida no jornal Folha Universal, que chamava-a de macumbeira charlatã. Essa história terminou com um infarto fulminante que levou a óbito Mãe Gilda e, posteriormente, a instituição do 21 de janeiro como o dia de combate à intolerância religiosa.


Ampliando um pouco o olhar sobre a In-tolerância, podemos visualizar o pensamento de base ocidental, elitista, machista e racista, que tem como tese a classificação binária de raças superiores/raças inferiores e culturas evoluídas/culturas primitivas, em que símbolos, rituais e elementos da cultura africana ou afrodescendente são classificados como inferiores/demoníacos/não racionais. De fato, tudo que foge à lógica da racionalidade ocidental acaba na vala comum. A predominância do pensamento eurocêntrico no cenário brasileiro tende a impor uma maneira de sociabilidade, uma maneira de pensar, sentir e agir que leva à segregação de grupos, incentiva o machismo, o sexismo e o apartamento entre sagrado e profano, entre bem e mal no campo religioso. Os Terreiros como espaços da Cosmovisão Africana e de expressões específicas e complexas em sua ritualística, edificados por mulheres, acabam como alvo do olho do furacão, esse olhar punitivo judaico-cristão, afinal é mais fácil punir do que entender, castigar do que abrir-se para a compreensão.


Infelizmente muitas comunidades de matriz africana acabam travando uma batalha cotidiana para se afirmarem como Terreiro, pois esse assumir-se vem também com bagagem pronta, ou seja, racismo, machismo, sexismo, preconceito de raça e cor, perseguições, insultos. E o que, de coração, essas comunidades desejam é o respeito como pedra basilar da sociabilidade entre as religiões. Tolerância, não! Respeito à diversidade religiosa, sim!


Este artigo foi publicado na Revista Fábrica de Imagens, Edição 21, de julho/agosto de 2015. Para acessar o conteúdo na íntegra CLIQUE AQUI.

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