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A liberdade de opressão dos abertamente preconceituosos

... O que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada.

Foi vendo o documentário O Riso dos Outros (para o qual tive a honra de ser entrevistada), de Pedro Arante, que descobri que Preta Gil é uma muleta no humor brasileiro. Parece que, quando a noite de um comediante de stand-up não está rendendo e o público não ri, o humorista faz uma piadinha falando que a Preta Gil é gorda e feia, e o pessoal gargalha.

Tem gente que adora chamar negro de macaco, mulher de vadia gorda, homossexual de viado, e faz desse tipo de “humor” uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa gente, a pior praga que tem neste planeta não é a fome ou a violência, é o politicamente correto. Porque como é que pode?! Durante séculos esse pessoal pôde escrever e falar besteiras à vontade, fazer piada com tudo, e de repente surge alguém para criticá-los?!

A cada nova discussão, os humoristas bradam “Censura!” Eles reclamam que há uma “patrulha”, uma “ditadura do politicamente correto” que não permite que realizem seu trabalho, que, dizem eles, é apenas o de fazer rir. Porém, há uma inversão de valores que já foi consolidada pelo senso comum. Enquanto os comediantes são vistos como modernos e despojados – apesar das palavras francamente reacionárias que saem de suas bocas –, as pessoas que lutam por mudanças na sociedade são consideradas caretas e atrasadas. O resultado é que hoje politicamente incorreto virou eufemismo para abertamente preconceituoso.


Chegamos num ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira contra qualquer grupo que costuma ser discriminado. O problema não é um grupo ser discriminado; o problema é alguém te achar uma besta quadrada por você fazer piada com um grupo que costuma ser discriminado!


O humor pode sim ser transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram preconceituosos. Certamente eles já comparavam negros com macacos, e já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia tem em ser estuprada. Quem ainda adota essas piadas no século 21 não está sendo ousado ou criativo, só está seguindo uma tradição. Ousadia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde ou de engraçado em eternizar velhos preconceitos.


E não existe isso de “é só uma piada”. Piadas não são neutras. São armas que podem ferir, destruir, perpetuar preconceitos, e também derrubá-los. O humor é um discurso como outro qualquer, não está acima da lei. Querer que o humor se responsabilize pelo que diz não é censura – é também liberdade de expressão. Mas muitos humoristas parecem querer manter, a qualquer custo, a liberdade de opressão.


Lola Aronovich é professora de Literatura em Língua Inglesa da UFC e autora do blog Escreva Lola Escreva.

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