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Toda Vida Importa?

Christiane Ribeiro Gonçalves, psicóloga, mãe, feminista, diretora da Fábrica de Imagens e coordenadora do Curta o Gênero e do Ponto de Cultura Outros Olhares


Como se não bastasse vivenciarmos nos dois últimos anos uma desastrosa crise social, econômica e política, agravada por uma crise sanitária decorrente da pandemia de Covid, a qual ocasionou a morte de mais de 665 mil pessoas, ainda nos deparamos com as inúmeras violências e violações de direitos que atingem corpos subalternizados, invisibilizados, vulnerabilizados, silenciados e, tão devastador quanto isso, a omissão por parte da mídia e, ainda, a impunidade, na maioria dos casos.


Considerando o início da pandemia em 2020 até agora, são inúmeros os episódios de violências ocorridos no Brasil, trazendo grande comoção nacional e alguns repercutindo também internacionalmente. Tivemos o caso de João Pedro, um adolescente de 14 anos morto dentro de casa em uma operação policial no Rio de Janeiro, em maio de 2020 e, em uma situação semelhante, Mizael da Silva, em julho de 2020, em Chorozinho, Ceará; Miguel Otávio que caiu do 9º andar de um prédio, por negligência da patroa de sua mãe, em junho de 2020, em Recife; o caso da menina de dez anos do Espírito Santo, que engravidou depois de ter sido estuprada e ameaçada desde os seis anos por um tio; João Alberto morto por seguranças de um supermercado em novembro de 2020; a morte do menino Henry Borel em março de 2021 após ser agredido pelo padrasto, um vereador da cidade do Rio de Janeiro com conivência da mãe; Kathlen Romeu, jovem grávida também morta em uma ação policial no Rio de Janeiro, em junho de 2021; casos de violência doméstica como a agressão sofrida pela mulher de um DJ em Fortaleza, como a de uma babá em Salvador que pulou do 3º andar de um prédio para fugir das agressões de sua patroa; o esquema de exploração sexual envolvendo o dono das Casas Bahia.


Após as eleições de 2018, aumentou a quantidade de mulheres e pessoas LGBTQIA+ eleitas e, consequentemente, as violências políticas, sobretudo as de gênero, cresceram bastante. Além do já corriqueiro silenciamento de mulheres, travestis e transexuais nas casas legislativas, soma-se o assédio moral e sexual (como foi o caso da deputada de São Paulo, Isa Penna) e ataques e ameaças de morte (a exemplo da vereadora trans Benny Briolly de Niterói-RJ), a tentativa de feminicídio cometida pelo vereador de Fortaleza, Ronivaldo Maia, os crimes sexuais do vereador Gabriel Monteiro (RJ), os áudios sobre as ucranianas enviados pelo ex-deputado Arthur do Val (SP). Sem falar no deputado Daniel Silveira, aquele que rasgou a placa de rua com o nome de Marielle Franco, e seus ataques e ameaças ao STF. Aliás, quem mandou matar Marielle Franco? Por que alguns casos possuem uma rápida investigação e solução e outros são engavetados ou se arrastam lentamente, trazendo o fantasma da impunidade? Por que Ronivaldo Maia voltou à Câmara Municipal de Fortaleza?


Outras violências e violações de direitos merecem destaque. Segundo o portal de notícias Brasil de Fato, em 2021 foram feitas 571 denúncias de ataques à liberdade de crença no Brasil, ressaltando não apenas a intolerância religiosa, mas também o racismo religioso, já que grande parte dos ataques são voltados a religiões de matrizes africanas.


Ainda em 2021, a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) lançou um dossiê contendo registros das violências e ameaças aos povos indígenas no Brasil. O referido documento revela que tais ataques estão presentes num contexto institucional, principalmente por parte do Governo Federal que reforça um discurso de ódio e racista e autoriza a desestruturação de políticas públicas e de órgãos de proteção e fiscalização que atendem esta população, mas também em ações do Legislativo e Judiciário. Além disso, há o crescimento de disputas históricas com setores imobiliários, agropecuários, da mineração, de extração da madeira e do garimpo ilegal que, muitas vezes respaldados pelas instituições acima citadas, invadem e exploram terras indígenas, provocando violências, perseguições e criminalizações de lideranças e até mesmo mortes. Os mais recentes ataques têm se dado aos Povos Yanomamis.


Seguindo essa mesma linha, as violências sofridas pelas lideranças do campo em decorrência da ocupação e posse de terras, vêm crescendo consideravelmente, incluindo aqui, ameaças de prisão, agressões, humilhações, intimidações e assassinatos. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, já no primeiro ano do Governo Bolsonaro, o número de conflitos rurais foi maior que os últimos dez anos anteriores.


Com a pandemia também vimos crescer o número de pessoas em situação de rua, outra população que já sofre ataques constantes. Além de toda a vulnerabilidade e violências a que estão suscetíveis, a ausência de políticas públicas eficazes que envolvam projetos de moradia, aluguel social e casas de acolhida, ainda existem as políticas higienistas. O Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, tem denunciado incansavelmente inúmeros casos de aporofobia, não apenas na capital paulista, mas em tantas outras grandes cidades. O termo refere-se à rejeição, ao ódio, ao rechaço, à exclusão de pessoas, exclusivamente por sua condição de pobreza. A aporofobia é revelada principalmente na arquitetura hostil das cidades e em campanhas encabeçadas por muitas prefeituras, orientando a população em geral a não dar esmolas, com o objetivo de afastar as pessoas pobres do convívio e do olhar das demais.


Já nos dois primeiros meses de 2022, tivemos grandes repercussões dos casos do imigrante congolês Moïse Kabagambe e de Durval Lima, ambos homens negros; o primeiro, espancado até a morte ao cobrar uma remuneração atrasada no seu local de trabalho e, o segundo, morto a tiros por seu vizinho, um sargento da Marinha, que disse tê-lo confundido com um assaltante. Aqui no Ceará, também repercutiu bastante nas mídias locais e entre ativistas de movimentos sociais, o assassinato de Sofia Gisele, travesti moradora do bairro Bom Jardim em Fortaleza e os muitos casos da região do Cariri cearense.


E tivemos o assassinato de uma criança de nove anos, Jonatas de Oliveira dos Santos, filho de uma liderança rural, presidente da associação de moradores de engenhos da cidade de Barreiros-PE, uma região de muitos conflitos agrários. Uma criança morta dentro de casa por homens encapuzados que invadiram sua casa. Uma criança morta embaixo de uma cama onde tentou se esconder com sua mãe. Uma criança. Uma criança como Miguel Otávio, como Henry Borel, como a menina do Espírito Santo. Pouca repercussão na mídia e nas redes sociais...


Não é a intenção aqui lançar uma polêmica sobre qual vida importa mais. Todas as vidas importam! São infindáveis as ações contra pessoas negras, com deficiência, do campo, em situação de rua, LGBTQIA+, mulheres, indígenas, imigrantes, profissionais no contexto de suas atividades de trabalho... Todas as vidas importam! Todas!


De acordo com o Atlas da Violência de 2021, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, três pontos podem ter implicações no contínuo crescimento dos índices de homicídios no Brasil: 1. A política do Governo Federal que tem facilitado o acesso a armas de fogo; 2. O crescimento da violência contra lideranças do campo; 3. As intervenções policiais (civis e militares) com ausência de mecanismos institucionais de controle.


No entanto, para além de refletirmos sobre todas as violências exemplificadas e sobre os pontos acima citados que implicam no recrudescimento das mesmas, precisamos também refletir sobre quem mais se “beneficia” com essas violências. Por que alguns casos têm uma maior repercussão na grande mídia e mesmo nas mídias alternativas e de esquerda e entre os militantes e ativistas de movimentos sociais e, outros casos, são pouco abordados?


Um primeiro aspecto perceptível é o geográfico. O caso do menino Jonatas ocorreu na zona rural de um município do Nordeste. Da mesma forma, os inúmeros conflitos agrários ocorrem nos interiores do país, distante das sedes das grandes empresas de comunicação, concentradas na região sudeste.


Segundo, é nítido que no sistema capitalista, o que é relevante para grandes empresas, é o que lhes possibilitam o lucro. Com os setores de comunicação não é diferente. Só vão anunciar o que é mais “conveniente”, o que dar uma maior visibilidade e, incorporar causas relacionadas a questões de raça, gênero e sexualidades é mais interessante do que focar nas desigualdades oriundas do sistema de exploração.


Novamente citando o caso do menino Jonatas, o mesmo envolve diretamente lideranças do campo e o agronegócio. A uma grande empresa de comunicação que levanta diariamente a bandeira de que “o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo”, muito provavelmente não interessa embates com quem sustenta tal prática.


Acompanhamos os desastres mais recentes ocasionados pelas chuvas intensas em Minas Gerais, Bahia e em Petrópolis – RJ. Essa crise climática e ambiental não iniciou agora. Ela vem de um processo histórico secular. O ponto crucial é que as enchentes, as inundações e os deslizamentos de terra, atingem, na grande maioria das vezes, pessoas pobres. Então, as campanhas, os alertas, a visibilidade, só surgem no afã da situação pois, mais uma vez, para o sistema capitalista, há pautas que não geram lucro e, ainda, vão de encontro aos interesses dos donos dos meios de produção. Algo que, numa ação conjunta com a sociedade e os gestores públicos, envolvendo planejamento e prevenção, poderia alcançar soluções satisfatórias, evitando tantas mortes.


Para nós, “o pessoal dos direitos humanos”, realmente toda vida importa. O mesmo já não se pode dizer sobre quem a usa conforme as conveniências do capital.

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