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O lugar das mulheres na Diáspora e a questão dos Direitos Humanos

Um olhar sobre experiências, dramas e interseccionalidades de mulheres africanas na cidade de Fortaleza/CE

texto que compõe o primeiro volume dos “Seminários Outros Olhares”, organizado pela Fábrica de Imagens. Por Ercílio Neves Brandão Lança.


RESUMO

Este artigo analisa o lugar social de mulheres africanas na diáspora, na cidade Fortaleza (CE), sob a ótica dos direitos humanos, e objetiva compreender suas experiências, seus dramas e suas interseccionalidades com base em sua quádrupla condição enquanto mulheres, negras, africanas e imigrantes. O trabalho é resultado de pesquisa etnográfica, mesclada com entrevistas abertas e conversas informais com jovens africanas oriundas de Cabo Verde e Guiné-Bissau, no contexto da migração estudantil africana para o Brasil. Nas conversas, elas narram suas experiências de mobilidade da África para o Brasil, os modos de vida na diáspora e as interações afetivas, articulando com interseccionalidades de raça, sexo, etnia, escolaridade e trabalho. Percebo a existência de processos de resiliência entre as africanas, isto é, a capacidade de superação em contextos desfavoráveis e de adversidades frequentes na vida cotidiana, na escolaridade, no trabalho, nas afetividades e na própria sobrevivência na diáspora.


Palavras-chave:Mulheres africanas. Direitos humanos. Diáspora africana. Interseccionalidades.


Introdução

Este artigo tem como objetivo analisar o lugar social de mulheres africanas na diáspora na cidade de Fortaleza (CE), na perspectiva dos direitos humanos, bem como trazer à luz seus modos de vida enquanto mulheres, negras, africanas e imigrantes, interseccionando com as categorias de raça, sexo, etnia, escolaridade e trabalho. Por outro lado, pretendo compreender as experiências, os dramas sociais dessas jovens mulheres estudantes e apresentá-las como exemplo de superação de adversidades em contextos desfavoráveis – “resiliência” – numa metrópole racialmente hierarquizada, com suas distinções de classe, sexo, gênero, religião, que representa um cenário de dificuldades no acesso à escolaridade e ao emprego. Vulnerabilidades estas, particularmente, mais incidentes em determinados grupos raciais e sociais.


Em outras palavras, trata-se de compreender o sentido das experiências de deslocamento dessas jovens imigrantes africanas; perceber os dramas sociais vivenciados na sociedade fortalezense – que se pensa branca e europeia – distinta de suas culturas de origem; verificar os discursos sobre pertencimento, classe, raça, sexualidade, educação, trabalho e afetos, interseccionando com sua condição de mulheres, negras, africanas e imigrantes. Nesse cenário, impõem-se várias questões: que mudanças a experiência de migração produz na vida e nas identidades dessas jovens mulheres? Como pensar suas inserções em uma sociedade hierarquicamente racializada e sexista? Quais são os seus lugares na estrutura social e como se dá a inserção social dessas mulheres na sociedade de acolhida? Como ficam seus direitos humanos? Como esse contexto social de discriminação racial e de gênero causa prejuízos à sua saúde psíquica e psicossocial, afetando a sua autonomia de cidadão?


Faz-se necessário esclarecer que me ocupo de mulheres africanas sob ponto de vista positivo – não como vítimas, mas como protagonistas; como personagens capazes de agir nas tramas da vida na diáspora, de superar adversidades e de encontrar soluções próprias para o seu dia a dia. A condição de estudante e de pesquisador africano, integrante dessa diáspora, entrevistando mulheres africanas de culturas próximas, certamente, interfere na pesquisa. Assim, opto pela imparcialidade na análise, e não mais pela propalada “neutralidade científica”, conforme as ilações de Meihy e Holanda (2010 apud PRESTES, 2013). A rigor, muitos estudos sobre populações afrodiaspóricas apresentam-nas como vítimas, oprimidas, sem capacidade de “agência”. No cenário migratório estudantil em Fortaleza, mulheres de distintos países africanos têm revelado capacidade de adaptação, levando consigo a cultura, a identidade e as estruturas de seus países de origem, mesclando-as com os valores da sociedade de acolhida.


No tocante à estrutura do texto, na primeira parte, faço uma breve discussão sobre a noção de “diáspora” que utilizo em meus trabalhos, com base nas ideias de seus fundadores: Du Bois (1999, 2007a, 2007b), Gilroy (2001) e Hall (2006, 2011a, 2011b, 2013), teóricos dos estudos pós-coloniais e estudos culturais. Já no segundo segmento, analiso o lugar social dessas jovens mulheres africanas na diáspora da cidade de Fortaleza (CE), à luz das contribuições teóricas de autoras feministas e diaspóricas. Em seguida, abordo sobre as interpelações e ressignificações identitárias de raça, gênero e religião, bem como os processos de resiliência educacional e laboral acontecidos. Por último, compreendo as experiências, os dramas vivenciados na diáspora, focalizando, em particular, suas sociabilidades e afetividades, interseccionando com a quádrupla condição de mulheres, negras, africanas e imigrantes.


Movimentando a noção de diáspora

Historicamente, a participação das mulheres nos movimentos diaspóricos tem sido pouco estudada. A rigor, a maioria dos estudos sobre populações diaspóricas negras, comunidades de imigrantes de origem africana e afrodescendentes tem como foco os indivíduos do sexo masculino, negligenciando a condição das mulheres, sejam elas imigrantes, trabalhadoras, refugiadas ou estudantes, assim como suas questões de direitos humanos, gênero, educação, sexualidade, dentre outras. Na abordagem acerca da diáspora africana no Ceará e de suas ressignificações identitárias, entendo ser fundamental compreender e discutir as experiências de deslocamentos das mulheres africanas e suas vivências. A noção da diáspora constitui uma categoria central na análise da presença de estudantes africanos(as) em território brasileiro no contexto da migração estudantil. Nesse sentido – à luz das ideias fundantes de pensadores dos estudos culturais e de estudos pós-coloniais –, venho delineando o campo analítico que designo “diáspora africana no Ceará”, enfatizando os processos de ressignificação identitária de seus integrantes. (LANGA, 2014, 2015).


A definição de “diáspora” que movimento nos meus trabalhos é inspirada nos escritos de autores, como Du Bois (1999, 2007a, 2007b), Gilroy (2001) e Hall (2006, 2011a, 2011b, 2013). Tal conceito vem sendo utilizado por esses e outros autores em referência à dispersão de comunidades afrodescendentes ao redor do mundo, cujo deslocamento produz identidades moldadas e localizadas em distintos e por diferentes lugares. (WOODWARD, 2013). Na sua acepção original, o termo se reporta à dispersão do povo judeu. Entretanto, a utilização desse conceito que se refere às populações negras foi cunhada por Du Bois (2007), comovido com a situação das comunidades afrodescendentes, em distintas regiões do continente americano, a vivenciarem condições comuns de subalternidade, de opressão, sendo racializadas e discriminadas devido ao seu passado escravo. Tais comunidades têm como principal característica em comum a experiência do sofrimento, causado pela escravidão racial na modernidade.


Com base nessas análises, Gilroy (2001) e Hall (2011a, 2011b) compreendem as populações afrodescendentes espalhadas pelo mundo como uma realidade cultural do “mundo moderno europeu ocidental”, que emergiu do processo de escravidão racial de populações africanas. Eles reconhecem a escravidão racial como ligação à modernidade ocidental e como ponto de entrada dos povos africanos nessa cosmovisão. Entretanto, seus pensamentos apontam sujeitos gerados por essa realidade como sujeitos da história, enquanto agentes e produtores de cultura, e não apenas como receptores.


Ao longo de suas obras, esses autores demonstram que tais populações diaspóricas têm uma história intelectual e capacidade cognitiva criadora – dimensões negadas pelo racismo e pela escravidão. Gilroy (2001) e Hall (2011a, 2011b) rompem com as tradições afrocentristas da história e apontam para o hibridismo como sendo a principal característica dessas comunidades, adotando uma perspectiva diaspórica global e de superação do racismo. Esses três autores apresentam ideias em comum pelo fato de pensarem as populações descendentes de africanos espalhadas pelo mundo como uma realidade racial e cultural criada pela memória do terror racial – a moderna escravidão racial – e pelo sistema de plantação das monoculturas de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, na quais o hibridismo seria uma de suas características principais.


De fato, os pensadores dos estudos culturais têm considerado a diáspora como uma noção que permite compreender as identidades de pessoas dispersas, sejam elas deslocadas, migrantes ou apátridas – identidades essas que não podem ser atribuídas a uma única fonte. (WOODWARD, 2013). Para essa autora, a migração produz identidades plurais, mas também identidades contestadas, em um processo caracterizado por grandes desigualdades. Dessa forma, a dispersão das pessoas pelo globo terrestre produz identidades que são moldadas e localizadas em diferentes lugares e por diferentes lugares. Tais identidades “ressignificadas” podem ser desestabilizadas e desestabilizadoras. (WOODWARD, 2013).


Nos últimos anos, o conceito de “diáspora” tem se mostrado relevante e bastante profícuo em diversos estudos e investigações realizados com populações deslocadas, demonstrando avanços teóricos significativos nas ciências sociais, a partir da sua utilização pelos autores dos estudos culturais e pós-coloniais, historiadores, antropólogos e sociólogos.

Vários teóricos e pesquisadores têm se apropriado dessa noção e a utilizado nas suas análises teóricas e práticas.Assim, denomino de “diáspora africana” a crescente presença e permanência de estudantes oriundos de diversos países africanos – Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe, Nigéria, Moçambique, República Democrática do Congo, Senegal, Togo – no estado do Ceará.


Tal diáspora é constituída por jovens adultos oriundos de nações da África Subsaariana e pertencentes a diversos grupos etnolinguísticos bantu, entre os 18 e 35 anos de idade, majoritariamente, indivíduos de origem bissau-guineense e cabo-verdiana, do sexo masculino, mas com um contingente cada vez maior de mulheres que migram, voluntariamente, para cursar o ensino superior no Brasil. (LANGA, 2015). Tais sujeitos apresentam identidades multiculturais e distinções de várias ordens, que marcam suas vidas na diáspora.


A diáspora africana no Ceará apresenta-se distinta das realidades vivenciadas pelas comunidades negras e afrodescendentes analisadas por Du Bois (1999, 2007a, 2007b), Hall (2011a, 2011b) e Gilroy (2001). A diáspora africana no Brasil, particularmente aquela dos estudantes residentes em Fortaleza, é resultado de um processo suis generis de migração estudantil contemporânea e voluntária de africanos nos finais do século XX e no início do século XXI, em busca de melhores condições de estudos e de vida. (LANGA, 2015). Essa é uma via fecunda, que traz a especificidade da diáspora africana no Ceará e que circunscreve a originalidade do estudo que desenvolvo.


O lugar das mulheres africanas na diáspora: da subalternidade ao empoderamento

A diáspora africana em Fortaleza, apesar de ser composta por uma população eminentemente masculina, tem uma crescente presença de mulheres, ainda que constituam um contingente invisibilizado pela sociedade fortalezense e, às vezes, pela própria comunidade africana. Nesse cenário, tem-se a coexistência de diversos movimentos sociais e agremiações estudantis africanas comandadas por indivíduos do sexo masculino, contando com pouca ou nenhuma participação das mulheres africanas. Tal situação revela desigualdade de gênero e invisibilização da participação das jovens africanas. É esse um fenômeno interpelador na diáspora africana nessa metrópole do nordeste brasileiro.

Por essas razões, trago ao debate os modos de vida e as experiências de deslocamento dessas jovens estudantes; as contribuições teóricas de autoras negras, feministas e militantes de diversos movimentos pelos direitos das mulheres. A participação das mulheres nas diásporas negras e afrodescendentes foi uma questão pouco explorada pelos três teóricos fundadores dos estudos diaspóricos – Du Bois, Gilroy e Hall. Ainda que alguns autores dessas correntes tenham reconhecido que os discursos raciais incidiram, particularmente, sobre os corpos das mulheres afrodiaspóricas, pouco se abordou acerca do lugar social, político e econômico. Gilroy (2001) é um dos autores que circunscreve esse lugar:


Os racismos que codificaram a biologia em termos culturais têm sido facilmente introduzidos com novas variantes que circunscrevem o corpo numa ordem disciplinar e codificam a particularidade cultural em práticas corporais. As diferenças de gênero se tornam extremamente importantes nesta operação antipolítica, porque elas são o signo mais proeminente da irresistível hierarquia natural que deve ser restabelecida no centro da vida diária. As forças nada sagradas da biopolítica nacionalista interferem nos corpos das mulheres, encarregados da reprodução da diferença étnica absoluta e da continuação de linhagens de sangue específico. A integridade da raça ou da nação, portanto, emerge como a integridade da masculinidade. Na verdade, ela só pode ser uma nação coesa se a versão correta da hierarquia de gênero foi instituída e reproduzida. (GILROY, 2001, p. 19).

Na ótica de Gilroy (2001), emergiram novas formas de racismos nas sociedades contemporâneas, que inscreveram os corpos negros e suas práticas corporais numa nova ordem disciplinar. Assim, no contexto de luta pelos direitos humanos e contra as diversas formas de racismos, de discriminação e de opressão, as discussões sobre gênero têm ajudado nas lutas por igualdade e colocado a olho nu as interferências dos Estados-nação nos corpos das mulheres afrodiaspóricas, que são o lócus da reprodução biológica e das diferenças étnicas.


Nesse contexto de racialização e invisibilidade, coube às próprias mulheres diaspóricas e “de cor”, falar e narrar sobre suas experiências. É dessa forma que, nas linhas seguintes, trago as contribuições de autoras pós-coloniais que vivencia(ra)m as experiências de diásporas, de racialização e de distintas formas de opressão por sua condição de mulheres, pertencentes a grupos considerados marginais.


Spivak (2010) discute as experiências de mulheres partindo de categorias como gênero, discurso hegemônico, violência epistêmica e subalternidade. Ela questiona a posição do intelectual pós-colonial ao explicitar que nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico. Dessa forma, a autora oferece uma análise alternativa às relações entre os discursos ocidentais e a possibilidade de falar da ou pela mulher subalterna, sem reproduzir as estruturas de poder e opressão. Tais estruturas mantêm o subalterno silenciado e não possibilitam qualquer posição ou espaço em que ele possa falar ou ser ouvido.


Nesse processo de “representação” do outro, Spivak (2010) ressalta a ausência desse caráter dialógico na fala do subalterno, isto é, o subalterno é capaz de falar, mas sua fala não tem um caráter dialógico. Spivak (2010) considera como subalternos, particularmente, as mulheres pobres e negras do Terceiro Mundo, confrontando as mulheres feministas do Primeiro Mundo, acerca da condição e da situação das primeiras. Na sua ótica, as mulheres do Terceiro Mundo não podem falar, e quando o fazem, não encontram meios para se fazerem ouvir:

Pode o subalterno falar? O que deve a elite fazer para estar atenta à construção contínua do subalterno? A questão da ‘mulher’ parece ser a mais problemática nesse contexto. Evidentemente, se você é pobre, negra e mulher, está envolvida de três maneiras. Se, no entanto, essa formulação é deslocada do contexto do Primeiro Mundo para o contexto pós-colonial (que não é idêntico ao do Terceiro Mundo), a condição de ser ‘negra’ ou ‘de cor’ perde o significado persuasivo. A estratificação necessária da constituição do sujeito colonial na primeira fase do imperialismo capitalista torna a categoria ‘cor’ inútil como um significante emancipatório. […] Não é apenas uma questão de um duplo deslocamento, já que não é simplesmente o problema de encontrar uma alegoria psicanalítica que possa conciliar a mulher do Terceiro Mundo com a do Primeiro. (SPIVAK, 2010, p. 85).

É desse modo que, na sua reflexão, Spivak (2010) enfatiza essa tripla condição de opressão vivenciada por esses sujeitos subalternos silenciados – por serem mulheres, pobres e negras, oriundas do Terceiro Mundo – diante do mundo capitalista, cuja situação, nem de perto nem de longe, pode ser comparada com a das mulheres do Primeiro Mundo. E continua a sua reflexão nessa discussão com as feministas do Primeiro Mundo – particularmente, com aquelas intelectuais das ciências sociais e humanas, áreas pouco valorizadas, mas que contribuem nessa violência epistemológica do Primeiro Mundo sobre o Terceiro Mundo:

As preocupações que acabo de expressar são válidas apenas se estamos falando da consciência da mulher subalterna – ou, mais aceitável, do sujeito subalterno. Relatar, ou melhor ainda, participar do trabalho antissexista entre as mulheres de cor ou as mulheres sob a opressão de classe no Primeiro ou no Terceiro Mundo está inegavelmente na ordem do dia. Devemos acolher também toda a recuperação de informação em áreas silenciadas, como está ocorrendo na antropologia, na ciência política, na história e na sociologia. No entanto, a pressuposição e a construção de uma consciência ou de um sujeito sustentam tal trabalho de constituição de um sujeito imperialista, mesclando a violência epistêmica com o avanço do conhecimento e da civilização. E a mulher subalterna continuará tão muda como sempre esteve. (SPIVAK, 2010, p. 86).

Segundo essa acepção da autora, ao ignorarem a condição das mulheres do Terceiro Mundo, tais intelectuais contribuem para o radicalismo masculino. Assim, devemos aprender a falar sobre essas mulheres historicamente silenciadas, bem como criticar o próprio discurso pós-colonial com as melhores ferramentas que esse discurso produz.


Brah (2011) é outra mulher diaspórica, feminista, pós-colonial e “de cor” que destaco, pois aborda a questão das identidades das mulheres diaspóricas explorando as categorias e interseccionalidades de raça, gênero, classe, sexualidade, etnia, geração, entre outras. Sua experiência de vida é marcada pelo deslocamento, pela dispersão e pela vivência na diáspora, nos “lares” em quatro dos cinco continentes: primeiro na Ásia, depois na África, em terceiro na Europa, e por último, nos EUA. Tais experiências de diferença, solidariedade e identidade tornaram-se significativas na sua vida e obra e também tornaram complexo seu sentimento de pertença nacional.


‘Sou ugandesa de ascendência indiana’, respondi. Ele parecia satisfeito com minha resposta. Mas estava claro que ele não podia ver que eu era ambos. O corpo que estava diante dele já estava classificado dentro das relações sociais, atravessadas por gênero, pelo sanduíche colonial. Eu não podia simplesmente ‘ser’. Tinha que assumir uma identidade, independente do fato de que ao assumir uma identidade, ignorava todas as outras identidades (gênero, raça, casta, religião, grupo etnolinguístico, geração…). Estas outras identidades não tinham importância na entrevista. […] Embora eu soubesse, e eu sabia que o ‘look’ tem um grande significado nos regimes coloniais de poder. A aparência importava por causa da história da racialização das ‘aparências’, importava porque os discursos sobre o corpo haviam sido cruciais para a constituição dos racismos. E o poder racializado operava nos e através dos corpos. Além disso, o poder se configurava em hierarquias, não somente entre as categorias de pessoas superiores e pessoas subalternas, mas também entre as próprias categorias subalternas, isto é, entre ‘indianos’ e ‘africanos’, neste caso. (BRAH, 2011, p. 25).

Brah (2011) aponta para a existência da questão da aparência física e da nomeação/autoidentificação com apenas uma identidade no “sanduíche colonial”, criado pela colonização europeia na África. Demonstra que, na realidade, ela sempre foi “muitas coisas” ao mesmo tempo e que, ao se autodeclarar e se identificar com uma e única identidade, ignoraria todas as outras categorias identitárias, como a de gênero, casta, religião, grupo etnolinguístico, geração etc. Na sua ótica, a racialização dos corpos dos indivíduos configura um aspecto importante para os regimes de poder coloniais e pós-coloniais e para a constituição dos diferentes tipos de racismos. Tal poder opera a partir dos corpos – não apenas entre as classes dominantes, mas também entre os dominados.


Já a feminista e ativista afro-americana Collins (2000) argumenta que as mulheres não são iguais, prevalecendo entre elas diferenças e conflitos de etnia, de classe social e de raça. Para reagir à tentativa de homogeneização idealizada pelas “feministas tradicionais”, as mulheres negras passaram a organizar aquilo que hoje é denominado “Feminismo Negro”. Na sua ótica, ainda que defendesse a solidariedade, o feminismo tradicional não conseguiu encarar as diferenças entre as mulheres brancas e negras. Assim, o Feminismo Negro pretende ser porta-voz de todas as mulheres negras.


Ao abordar o caso específico das relações de mulheres negras, Collins (2000) – uma das autoras representantes e expoentes dessa corrente – argumenta que a opressão está intimamente ligada às suas histórias familiares e que poucos teóricos sociais estão dispostos a pensar a realidade além das suas experiências pessoais. Na sua ótica, muitas mulheres negras trabalham em situações de opressão, conforme a raça, o gênero, a orientação sexual, a nacionalidade, a idade e a etnia, durante longos períodos de tempo e sem acesso a recursos nas sociedades em que estão inseridas. De acordo a autora, o Feminismo Negro surgiu para fomentar o empoderamento de mulheres negras, documentar a existência de tal conhecimento e traçar seus contornos. Ao ampliar a sua abordagem para questões ligadas à classe, etnia, cultura e raça entre as mulheres negras, essa corrente apresenta-se como uma abordagem interseccional profícua para problematizar tais questões.


As interpelações e ressignificações identitárias de raça, gênero e religião

Na diáspora africana no Ceará, além das diferenças de nacionalidade, de sexo e de tonalidade da cor da pele, existem outros fatores de distinção, tais como o nível de renda e a origem étnica, cultural e religiosa. Entre as mulheres na diáspora, além dessas questões, emergem outras diferenciações, conforme o país de origem e seu nível de riqueza – rico ou pobre –, o grau de estabilidade financeira individual, assim como também se distinguem segundo o grau acadêmico e o tipo de instituição de ensino que frequentam – público ou particular. Nesse contexto de distinções e diferenciações, trago as experiências de três jovens mulheres, africanas, negras e imigrantes, oriundas de distintos grupos etnolinguísticos, que, à data das entrevistas, entre os meses de janeiro e junho de 2013, tinham 24, 27 e 31 anos de idade. Duas eram de nacionalidade bissau-guineenses e outra cabo-verdiana, residentes na cidade de Fortaleza há mais de quatro anos, cursando Relações Internacionais, Enfermagem e Administração em faculdades particulares. Em suas narrativas, merecem destaque as formas como essas mulheres se identificam e se autodefinem no tocante à raça, à etnia e à religião, mas também em relação à orientação sexual, à classe social, à profissão ou ao trabalho, cujos depoimentos trago ao longo do texto.


Meu nome é Xiluva, mais conhecida por Xi, tenho 31 anos, sou solteira. Sou de Cabo Verde. Em Cabo Verde, nós não temos etnia, mas nós somos divididos em duas etapas: Barlavento e Sotavento. Eu sou de Sotavento. Eu sou pura mulher mesmo, eu sou pura feminina. Eu estudo e trabalho aqui no Brasil, estudo Administração e também trabalho na área de Administração. Eu sou da religião católica. (Xiluva – informação verbal).


Em seus relatos, percebo que identificações como “pura feminina”, “negra”, “hetero” e “católica” demonstram a existência de marcadores sociais de diferença entre as próprias mulheres, e entre estas e a sociedade fortalezense, permeada por hierarquias de raça, sexo, gênero e crenças religiosas. De fato, após certo tempo de vivência na diáspora em Fortaleza, diante da alteridade racial e da diversidade sexual e de gênero que permeiam a vida social brasileira – bem como das distintas formas de discriminação, mas também de inclusão, normalmente, por via da religião – ocorrem processos de “interpelações” raciais e “ressignificações” identitárias entre as imigrantes. Nesses processos, as estudantes africanas aderem a novas formas de identificação e de identidade: passam a assumir-se negras, heterossexuais, estudantes e trabalhadoras e pertencentes às diferentes igrejas cristãs.


Na realidade, tais identificações e ressignificações identitárias são fruto do encontro com a diversidade racial, sexual, religiosa e de gênero, revelando os “novos” modos de vida na diáspora, a partir dos quais essas mulheres passam a identificar-se ante a diversidade e as diferenças existentes. Dessa forma, as africanas são “interpeladas” com essas novas modalidades de identidade. Acerca desse processo, Hall (2013), inspirado nos escritos de Althusser (1971), esclarece essa apropriação da “identidade” ligada ao processo “interpelação”.


Em meus trabalhos recentes sobre este tópico, fiz uma apropriação do termo ‘identidade’ que não é, certamente, partilhada por muitas pessoas e que pode ser mal compreendida. Utilizo o termo ‘identidade’ para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos fazer falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode ‘falar’. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 1995). […] As referências ao termo que descreve o ‘chamamento’ do sujeito pelo discurso – ‘interpelação’ – nos fazem lembrar que essa discussão tem uma pré-história importante e incompleta nos argumentos que foram provocados pelo ensaio de Althusser ‘Os aparelhos ideológicos de Estado’ (1971). (HALL, 2013, p. 112).


Na ótica de Hall (2013), a “identidade” é compreendida como o ponto de encontro que une os discursos por um lado, e as práticas por outro, que “interpelam” os indivíduos. Ou seja, a identidade está ligada àqueles discursos e práticas que incitam os indivíduos a falar, a assumir seus lugares e a tomar posição enquanto sujeitos sociais. Tais interpelações produzem discursos subjetivos e constroem sujeitos ativos.


Entretanto, ainda que tenha desempenhado papel importante no desenvolvimento dos estudos culturais e pós-coloniais, bem como pelos teóricos das identidades sociais, o conceito de “interpelação” foi pouco explorado pelos autores dessas correntes. Ainda assim, essa noção revela-se profícua para compreender os processos identitários das mulheres africanas na diáspora, pois elas são interpeladas no cotidiano com diferentes realidades raciais, sexuais, de gênero, religião, dentre outras.


Os processos de resiliência educacional e laboral

As mulheres africanas constituem minoria nessa diáspora estudantil internacional, majoritariamente constituída por indivíduos do sexo masculino. Tal situação pode refletir a existência de patriarcalismo e de desigualdades de gênero em suas sociedades africanas, nas quais boa parte das famílias prefere investir na educação dos filhos do sexo masculino, em detrimento das mulheres por questões de herança e de continuidade da linhagem familiar. A rigor, as sociedades africanas são caracterizadas pela desigualdade sexual e de gênero, nas quais as mulheres circulam entre as famílias patriarcais. Assim, muitas mulheres são impedidas de estudar e de trabalhar fora do lar, não têm direito à terra, à herança familiar, bem como ao divórcio, e não podem recusar uma proposta de casamento.


Em diversas sociedades africanas, há grandes pressões para que as mulheres se casem cedo, em contextos em que as mulheres sem filhos têm ainda menos direitos do que aquelas com filhos. Os casamentos prematuros, os casamentos arranjados, as uniões forçadas com homens mais velhos e as uniões após estupro ainda são práticas socialmente aceitas. Assim como as práticas de excisão ou mutilação genital feminina parcial ou total, deixando apenas um orifício para a saída da urina e do fluido menstrual, que retiram da mulher o direito ao prazer e à satisfação sexual. Além do trauma, essa prática pode também provocar infecções, hemorragias, complicações durante o parto e, em alguns casos, a morte. A rigor, em muitas sociedades africanas rurais, e particularmente aquelas com populações islamizadas, o acesso de mulheres à educação, à saúde e ao emprego ainda é deveras restrito. Mesmo diante desse contexto desfavorável de violação de seus direitos humanos, as jovens africanas têm demonstrado interesse pela educação e pelo trabalho, procurando informações e se candidatando às vagas da maneira como podem, em percursos de persistência e luta. Vejamos, então, um dos relatos acerca da experiência escolar e dos processos que as conduziu a migrar para estudos no Brasil, movidas pelo desejo de cursar o ensino superior:


Bom, eu vim aqui como estudante. Eu soube da oportunidade de estudos aqui no Ceará através dos meus amigos. Aí fiz a matrícula, o menino fez a matrícula e enviou o documento pra mim, aí eu pedi o visto e vim aqui estudar. Eu estou aqui no Brasil, vou completar quatro anos no mês de junho. Lá em Guiné eu estudei até a 11ª classe. Eu trabalhava com vendas numa loja. Atualmente, aqui, agora não estou a estudar, porque eu já terminei de fazer o curso técnico e estou sem dinheiro pra fazer a faculdade, que é muito cara. A mensalidade é de 800 reais, 750 reais, depende da faculdade. Tem de 600 reais. Eu quero entrar no curso superior, fazer faculdade, que agora eu fiz o curso técnico. (Nyelete – informação verbal).

Os fatos acima descritos apontam para a existência de processos de “resiliência” entre essas jovens mulheres africanas, pois conseguiram superar contextos desfavoráveis de discriminação sexual e de gênero nas suas culturas de origem e, atualmente, na condição de mulheres, negras, africanas e imigrantes, conciliam adversidades frequentes no cotidiano da diáspora em Fortaleza. Sobre esse assunto, Prestes (2013) considera que a população negra brasileira costuma estar exposta a vulnerabilidades relacionadas a não garantia de direitos humanos, à ineficiência programática do governo em atender aos seus direitos de educação e de saúde e a práticas regulares de racismo. Tais vulnerabilidades atingem ainda mais incisivamente mulheres negras, inclusive pela exposição àquelas ligadas ao sexismo. Frente a esse panorama de opressões, de discriminações e de desigualdades, o que se observa são prejuízos à saúde, interferindo no desenvolvimento, no tratamento e no desfecho das doenças. Esse quadro torna-se ainda mais agravante quando se trata de mulheres africanas e imigrantes.


Cabe recordar que além do desejo de estudar, que é o principal motivo para migrarem para o território brasileiro, o trabalho aparece como uma dimensão igualmente importante nas vidas dessas mulheres. A profissão e/ou trabalho em que estão inseridas se encontra bastante presente nas suas falas, ocupando uma dimensão central de suas vidas. Nesse sentido, após chegarem ao Brasil, muitas dessas jovens envolvem-se no mercado de trabalho, muitas vezes, precários e/ou precarizados, como veremos mais adiante. A maioria das estudantes africanas está inserida em cursos de graduação de distintas faculdades privadas fortalezenses. Poucas conseguem entrar nas universidades públicas federais e estaduais, e um número ainda menor tem a possibilidade cursar pós-graduação.

Esse segmento maior de africanas que estuda em faculdades particulares recebe dinheiro das famílias para pagar mensalidades e manter-se na faculdade, complementando a sua renda por meio de trabalhos precários – em lojas, mercadinhos, cabeleireiros, restaurantes ou ainda em “casas de família” como babás – para, assim, pagar as contas e garantir a sobrevivência e a própria locomoção na cidade. Tais empregos são considerados forma de “trabalho irregular” pelas autoridades brasileiras, pois elas entram no país com o visto de estudante. Dentro desse grupo de estudantes inseridas nas faculdades particulares, existe um segmento de jovens africanas que, durante as férias letivas e nos tempos livres, dedica-se ao comércio de roupas e calçados entre o Brasil e seus países de origem. Da mesma forma, um número significativo das estudantes africanas matricula-se em cursos “técnico-profissionais” que oferecem “estágios remunerados”, que representam uma forma de inserção no mercado de trabalho. Desse modo, parte significativa das mulheres africanas é atraída para os cursos de Enfermagem e Administração, porque, ainda no meio do curso, conseguem empregos como técnicas de enfermagem, enfermeiras, auxiliares, atendentes e garçonetes. Vejamos, agora, falas sobre seus modos de sobrevivência.


Eu me mantenho no Brasil trabalhando. Eu recebo uma parte do dinheiro da minha família, eu tenho apoio dos meus irmãos, do meu pai e do meu namorado. Esse dinheiro é para pagar faculdade e está incluso o dinheiro para pagar quitinete. Quando demora sair meu salário, aí eu ligo pra minha família e digo que está faltando dinheiro, aí eles me ajudam. O dinheiro que eu confio mais é aquele que eu trabalho. O dinheiro da família é complementar. Eu estou aqui no Brasil há 5 anos. (Xiluva – informação verbal).

Entretanto, verifica-se grande rotatividade nesses trabalhos, devido aos contratos precários, aos salários baixos ou, até mesmo, à ausência de pagamento de salários. A condição de estrangeiras é algo que impede muitas estudantes de reclamarem por melhores salários e por seus direitos trabalhistas às autoridades competentes, optando, assim, pela clandestinidade, pois seus vistos estudantis impedem-nas de trabalhar. Outro fator que inibe esses sujeitos de recorrer à justiça, em caso de litígio, é a existência de racismo institucional, que quase sempre atua em desfavor dos estudantes na sua condição de negros e africanos. De fato, várias estudantes africanas que apresentaram problemas de falta de pagamento de mensalidades nas faculdades particulares, e outras que foram flagradas trabalhando pela Polícia Federal sofreram ameaça de deportação. As mulheres africanas na diáspora são invisíveis ou invisibilizadas, entrando em cena apenas quando aparecem em reportagens televisivas ou de jornais.


As experiências e os dramas sociais

As dificuldades e as distintas formas de discriminação enfrentadas pelas imigrantes africanas, bem como suas interpelações raciais e ressignificações identitárias, assemelham-se aos processos que Turner (2008, p. 33) define como “drama social”, ou seja, algo que se manifesta através da irrupção de momentos de tensão, incidentes – casos e eventos tão significativos que podem afetar e mudar as relações sociais. Para Turner (2005 apud DAWSEY, 2005), os dramas sociais, ou seja, as dificuldades dos indivíduos de recriar universos sociais e simbólicos no mundo contemporâneo, no qual os indivíduos se veem sozinhos e abandonados diante da responsabilidade de darem sentido à sua vida, seriam experiências vividas que remetem à noção de perigo, propiciando aos indivíduos acesso ao universo social e simbólico, opondo-se, assim, o cotidiano ao extraordinário. Nessa perspectiva, o drama social seria essencialmente como um conflito individual ou coletivo, podendo ser isolado, estudado e um evento menor, que prepara o terreno para eventos maiores. (TURNER, 2008).


De fato, além da desigualdade econômica e de gênero no acesso à educação presente nas suas sociedades de origem, na diáspora, as mulheres africanas sofrem também com o preconceito e com o racismo nas ruas, nas instituições de ensino e nos locais de trabalho, ainda que nem sempre sejam explicitamente reconhecidos por elas como forma de opressão. Vejamos:

Aí também tem umas coisas que o povo fala na rua. Eles veem a gente, não sabem como é que a gente está aqui. Aí fala assim: – ah meu Deus, é coisa do Lula mesmo trazendo esse povo pra cá, e a gente morrendo de fome. Eles falam isso esquecendo que a gente tá ajudando, a gente tá pagando imposto aqui. […] Como às vezes a gente ficou na esquina ali onde eu moro conversando, aí parou um bocado de carros achando que a gente era prostituta. Aí é meio difícil, porque acho que a classe negra é bem desqualificada. Aí a gente já foi confundido um bocado de vezes. Muitas vezes. Eles ficam pensando que eu sou puta, porque eu moro no Centro, e é onde ocorrem essas putarias. Às vezes, a gente tá no Centro sentado em frente da casa conversando de noite assim, aí um carro para, buzinando. Ninguém responde, porque se fôssemos garotas de programa, íamos dirigir. Aí eles passam, pedem desculpas não sei o quê, aí… a gente diz: –  beleza. (Nanana – informação verbal).

Diante das dificuldades, dos constrangimentos e das situações de opressão no cotidiano, o processo de migração para o Brasil apresenta-se como uma experiência única e significativa sentida de maneira intensa, que forma e transforma os modos de vida e as trajetórias dessas jovens mulheres. Seus depoimentos revelam a ocorrência de mudanças significativas nas suas identidades e em seus modos de vida, decorrentes do deslocamento, algumas vezes, tido como vantajoso, devido à possibilidade de cursar um ensino superior e de possuir uma formação de melhor qualidade, e outras vezes visto como algo negativo, por causa do afastamento da família e das dificuldades. Essa é uma realidade próxima daquela definida por Turner (2005) como “experiência vivida”. Vejamos, em seguida, um relato acerca dessas experiências significativas, em território brasileiro:

Depois de eu chegar aqui no Brasil, mudou tudo, principalmente assim o ritmo, a cultura diferente, o ritmo de viver diferente, maneira de ser diferente. Ai, ai! Mudou tudo mesmo. Mudou muita coisa na minha vida, eu não sei explicar, mas mudou. A vantagem do Brasil é porque aqui tem melhor escola, melhor estudo, isso aí é vantagem, mas a parte negativa são as condições de vida que são bem difíceis, muito bem difíceis. Lá em Cabo Verde, eu teria possibilidade de pagar uma faculdade, mas só que é assim, quando você estuda fora do país, eles dão-te mais valor. (Xiluva – informação verbal).

Quase sempre, a experiência migratória é ressignificada de forma positiva, considerada uma oportunidade de formação; por outro lado, também é vista como uma mudança no modo de ser e de estar na vida, devido às dificuldades econômicas que enfrentam para conseguir trabalho e pagar contas pessoais. Nas linhas seguintes, abordo acerca das sociabilidades, das interações afetivas e das interseccionalidades, em uma tentativa de circunscrever a dimensão afetiva das estudantes africanas na diáspora.


Sociabilidades, afetividades e interseccionalidades

Nas interações afetivas das mulheres africanas, verificam-se diversas formas de arranjos – namoros com indivíduos africanos, sejam de mesmo país e etnia e, algumas vezes, com homens brasileiros. Seus relacionamentos, muitas vezes, encarnam nítidas relações de submissão que envolvem dependência econômico-financeira. É comum que as moças africanas se relacionem, particularmente, com homens que contribuam para seu equilíbrio financeiro.


No cenário da diáspora, as mulheres negras, africanas em particular, ocupam o último lugar em termos de preferências afetivas. Tal situação pode ser reflexo da representação histórica existente acerca da mulher negra na estrutura patriarcal, racista e sexista da sociedade brasileira, na qual os homens africanos parecem se adaptar mais facilmente, transitar em seus distintos espaços e, em alguns casos, passar a adotar seus códigos. Já em relação às mulheres negras e africanas, em particular, o controle social – cultura, tradição, religião, fofoca – parece pesar mais sobre seus corpos. Cabe aqui lembrar a existência de estereótipos e de fantasias sexuais e raciais no imaginário social da sociedade brasileira acerca do homem negro, negão, africano, tido como bom de cama, com performances sexuais acima da média, mas também como malfeitor. Tais imaginários e estereótipos afetivos, fundados em determinados atributos tidos como desejáveis e atraentes, ora rejeitados e indesejados – grupo étnico, raça, corpo, cabelo, classe, renda, nacionalidade –, encarnam múltiplas expressões discriminatórias, configurando aquilo que Crenshaw (2002) designa de “discriminação interseccional” ou de “interseccionalidades”. Crenshaw (2002) argumenta que tais discriminações não são mutuamente excludentes e, assim, muitas vezes, se sobrepõem e se intersectam, criando complexas conexões nas quais se juntam duas ou mais categorias. As interseccionalidades são categorias de distinção acionadas e articuladas pelos indivíduos para promover interação, diferença ou diferenciação.


Por outro lado, as pesquisas de Berquó (1987) acerca dos padrões de nupcialidade da população brasileira – chances de casamento e recasamento, tipos de união, idade média ao casar, uniões exogâmicas e endogâmicas –, focalizando, em particular, a população negra, há muito que chamam atenção para a existência de um maior quantitativo de mulheres negras morando sozinhas no Brasil, na condição de viúvas, solteiras e separadas. Esse fenômeno afetivo e nupcial na sociedade brasileira, Souza (2008) designa, metaforicamente, de “solidão da mulher negra”. Na ótica dessa autora, tal “solidão” deve-se, principalmente, ao preterimento afetivo de mulheres negras por parte de homens negros e brancos, numa sociedade brasileira racialmente hierarquizada.


Contudo, Fanon (1983) – autor pioneiro no debate sobre a negritude, psicologia das relações raciais em sociedades coloniais – argumenta que as mulheres negras também apresentam suas preferências pelos homens, conforme a raça, etnia e classe social, demonstrando a existência de um número de frases, provérbios e linhas de conduta que regem a escolha de um namorado branco, e a consequente rejeição do homem negro. Via de regra, na diáspora em Fortaleza, as moças africanas apresentam escolhas afetivas distintas e independentes da raça, porém revelam preferências por aspectos como classe social e etnia, prevalecendo uma homogamia social. Sendo assim, verifica-se poucos relacionamentos com homens de países distintos dos seus ou com pouco poder econômico. Vejamos o relato:

Sim, eu namoro com meu namorado. É namorado. Nós nos conhecemos em África, na Guiné-Bissau, há cerca de cinco anos. A família dele me conhece mais ou menos. O carinho é ótimo. Ele é ótimo. A gente se ama. A gente não se vê porque ele está longe há cerca de cinco meses, ele está na Holanda. Ele mora lá, trabalha lá. As pessoas sabem que nós somos namorados. Ele me assume e eu assumo ele. […] Eu recebo apoio dele, só dele, dinheiro, presentes, ele me ajuda a pagar aluguel. Costumo sair com ele para festas, passear, praia, curtir. Nunca namorei nenhum brasileiro, guineense também nunca namorei. Somente meu namorado, o cabo-verdiano. Ele é o único namorado que eu tive. Estamos juntos há seis meses, ele voltou, ficou dois meses, aí voltou pra Holanda. (Nyeleti – informação verbal).

A existência de casais inter-raciais constituídos por mulher africana e homem brasileiro é um raro evento na diáspora. Já o mesmo não acontece com os relacionamentos inter-raciais e interétnicos constituídos por mulher brasileira e homem africano, ou mulher africana e homem africano. Nesse contexto interseccional, as moças africanas apresentam escolhas distintas das dos homens africanos, não tendo preferência por parceiros conforme a raça. Nesses relacionamentos, percebe-se a sua preferência por homens que sejam sensíveis à sua condição financeira, que ajudem nas despesas cotidianas. É necessário ressaltar o papel da violência doméstica, que parece permear e estruturar suas relações afetivas com homens africanos. De fato, são notórias as queixas de mulheres africanas sobre a violência nos relacionamentos com homens africanos. Vejamos:

Deixa os brasileiros com as safadezas deles. As meninas brasileiras dizem que os homens brasileiros são safados, mas são carinhosos, foi o que eu vi. Os africanos não são carinhosos, são muito brutos, batem nas mulheres. A maioria deles são brutos. Eles não ajudam. Só o meu namorado ajuda. Mas ele é africano de Cabo-Verde. Não é isso não. Tem uns meninos africanos de Guiné-Bissau que são bons. Eu tô falando da maioria dos homens africanos. Eu vivo lá na África, Guiné-Bissau, meu país eu conheço. Eu tô falando da maioria, que não presta, que bate nas mulheres sem fazer nada, ficam grossos com as mulheres. E aqui no Brasil, aquela lei do brasileiro [Maria da Penha] eu acho boa. Às vezes, as pessoas perdoam, que a pessoa já acostumou de ser grosso, é grosso mesmo sem parar. Você pode tentar ajeitar a pessoa para deixar de ser grosso. Os brasileiros são mais carinhosos. Mas eles também têm uma coisa na cabeça, aqueles ciúmes bestas. Eles não são assim, mas que eles gostam de matar, meu Deus do céu. (Nyeleti – informação verbal).

De fato, em seus relatos, as mulheres africanas apontam diferenças significativas entre os seus relacionamentos com homens africanos e com brasileiros, nos quais os últimos aparecem como mais carinhosos, menos algozes, demonstrando, assim, que trocam olhares, “flertam” e interagem com homens brasileiros. Nos discursos das africanas, percebe-se produção e representação do homem brasileiro como ideal – carinhoso, diferente, mas também ciumento –, criando-se uma “escala hierarquizada da brutalidade masculina”, diferenciada entre os homens brasileiros e homens africanos. (LANGA, 2014). Entretanto, suas falas parecem ignorar ou invisibilizar a “brutalidade” advinda do relacionamento com o homem brasileiro, assim como são incontestes os episódios de violência física de homens africanos em seus relacionamentos com mulheres africanas e brasileiras.


Conclusões

Este texto representa uma análise do cotidiano de mulheres da diáspora africana em uma cidade do nordeste brasileiro, sob ótica dos direitos humanos, tendo como recorte gênero, raça, origem e nacionalidade. Tal diáspora nasce do desejo de imigração voluntária de africanas(os) em busca de cursar o ensino superior num cenário complexo e diverso, com africanos e africanas de distintos países, classes, cultura, credos religiosos, línguas etc. Para a compreensão desse cenário, movimento diversos aportes teóricos: teorias sobre a diáspora, autores dos estudos culturais e pós-coloniais, feminismo negro, entre outros.


As mulheres ocupam uma condição peculiar nesse deslocamento, apresentando experiências, dramas sociais e interseccionalidades diferentes das dos homens africanos. Na diáspora, diante da alteridade, das distintas formas de discriminação e de inclusão, ocorrem processos de interpelação raciais e de ressignificação identitárias, nos quais as africanas passam a assumir-se negras, heterossexuais, estudantes, trabalhadoras e pertencentes às diferentes igrejas cristãs. Tais ressignificações identitárias são fruto do encontro com a diversidade racial, sexual, de gênero e religiosa no Brasil. Sua condição de mulheres, negras, africanas e imigrantes – numa sociedade hierarquizada por sexo e raça – as coloca numa posição de subalternidade distinta da dos homens diante da educação, do trabalho, das relações de gênero e do mercado afetivo, apresentando menores oportunidades de negociação e de inserção no mercado da educação e do trabalho. Um exemplo disso é o fato de boa parte das mulheres africanas que terminam cursos de graduação não conseguir cursar a pós-graduação. Mesmo diante de dificuldades e adversidades, primeiro na África e depois na diáspora no Brasil, elas apresentam suas estratégias de superação, em verdadeiros processos de resiliência. As africanas se inserem no mercado de trabalho por meio de empregos precários, para assim poderem complementar suas rendas, pagar despesas cotidianas e mensalidades nas faculdades, alimentar-se e deslocar-se na cidade. Além desse fato, existe uma dependência econômica delas em relação às famílias de origem e aos companheiros. Assim, muitas escolhem como parceiros homens que sejam sensíveis à sua condição socioeconômica e que as ajudem no cotidiano.


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