O debate sobre a redução da maioridade penal voltou a aquecer a esfera pública nacional. Nós te convidamos para refletir um pouco sobre a questão a partir de uma contundente entrevista que fizemos com Ariel de Castro Alves, advogado e especialista em gestão de políticas públicas de direitos humanos e segurança pública pela PUC-SP. Em 2015, Ariel participou da IV edição do Seminário Outros Olhares – avanços, retrocessos e resistências como conferencista da mesa Redução da maioridade penal: dignidade e violências.
FI – O debate sobre a redução da maioridade penal é absorvido pelo Seminário Outros Olhares em uma mesa na qual você participa. Fale um pouco sobre esta discussão já que é um campo no qual você atua.
Ariel – Existe todo um discurso, um clamor público, muito gerado por alguns setores da mídia, principalmente os sensacionalistas, e também por políticos que querem se promover às custas da bandeira da redução da maioridade penal, como se ela fosse resolver o problema da violência no Brasil, o que é um grande engano que está sendo colocado para a população, já que, na prática, ela vai gerar um aumento da violência, porque o sistema prisional brasileiro está totalmente falido e não tem as mínimas condições de, principalmente, reabilitar e de reeducar esses adolescentes. Nós temos uma reincidência no sistema prisional de 70%, enquanto nas unidades de internações, quando se cumpre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), temos, por exemplo, em São Paulo, na Fundação Casa, índices de 14%. Levando em consideração os adolescentes que completam 18 e vão para o sistema prisional, aumentaria para aproximadamente 30% de reincidência, o que ainda é bem menor que os índices do sistema penitenciário, e isso por si só já mostraria que há uma ilusão, uma falsidade, ao entender que a redução da maioridade penal vai resolver o problema da violência. Caso isso aconteça, nós tiraríamos então os adolescentes de unidades de internação que têm escolas e cursos profissionalizantes, onde são cuidados por assistente sociais, psicólogos e educadores para colocá-los em verdadeiros aterros sanitários de pessoas, que são os nossos presídios superlotados.
FI – Você é especialista em Segurança Pública. A partir deste espaço de atuação, como você percebe as formas de violações de direitos contra crianças e adolescentes no Brasil?
Ariel – Na prática, os adolescentes são muito mais vítimas do que autores de crimes. Nós temos no Brasil 28 crianças e adolescentes assassinadas todos os dias, na faixa etária de 16 ou 17 anos de idade. Além disso, quando nós falamos que a proposta é ilusória, nós temos que lembrar de uma frase clássica para nós que atuamos no direito penal: “o que inibe o criminoso não é o tamanho da pena, é a certeza de punição”. Essa é uma frase do criminalista Beccaria, do século XVIII, e no Brasil nós temos uma grande impunidade pela falta de esclarecimentos dos crimes, principalmente desses crimes que envolvem pessoas pobres, jovens, que ocorrem nas periferias. Nós temos apenas 8% dos homicídios sendo esclarecidos hoje no Brasil. Além disso, nós devemos considerar a crise que vive a Segurança Pública. Quase 10% dos homicídios hoje no Brasil são cometidos pelos próprios agentes da segurança pública. Ao invés de proteger a população, muitas vezes eles se transformam em verdadeiros assassinos, em verdadeiros bandidos fardados. Outro grande problema da segurança pública no Brasil é que boa parte dos policiais, principalmente os mais gabaritados e das mais altas patentes, têm empresas de segurança privada. Quer dizer, hoje boa parte dos agentes públicos da segurança pública investem na insegurança pública e daí vendem seus serviços de segurança privada. Levando em conta também a corrupção do sistema, e a questão das drogas, em geral o jovem pobre que mora na periferia é tratado como traficante. Se ele estiver com 3 baseados no bolso, vai ser extorquido pela polícia: ou paga a propina exigida ou é preso em flagrante por tráfico de drogas, porque quem decide é o policial no momento do flagrante. Então hoje nós vivemos a possibilidade de mais retrocessos, de a policia militar passar a investigar crimes, passar a fazer o próprio laudo de flagrante e levar direto para o poder judiciário e manter as pessoas presas. Portanto, temos todo esse cenário que devemos levar em conta do tema da redução da maioridade penal.
FI – E como está a situação da pauta da redução da maioridade penal que tramita no Congresso Nacional? Como vocês têm acompanhado isso?
Ariel – Temos acompanhado essas discussões, inclusive fui chamado em vários momentos até para falar em Comissões do Congresso Nacional que estão tratando do tema da redução da maioridade penal, tanto na Câmara quanto no Senado, em várias audiências públicas, à convite dos próprios deputados e senadores, principalmente daqueles que têm um posicionamento contrário. Mas sabemos que não basta nós, dos movimentos sociais, as pessoas que atuam em defesa dos direitos humanos, buscarmos convencer os parlamentares, precisamos também convencer as bases sociais desses parlamentares, as pessoas que elegem os deputados e os senadores. Muitas vezes o erro das entidades e dos movimentos sociais é achar que o campo de inserção é só no Congresso Nacional. É claro que lá é importante, mas temos que convencer também a população que a redução da maioridade penal vai gerar mais violência, que não é dessa forma que vamos resolver o problema da criminalidade juvenil no Brasil.
FI – Em um momento de grande repercussão de pautas polêmicas nas mídias sociais, percebe-se um envolvimento dos internautas seja contrários à redução da maioridade penal seja a favor. Nesse sentido, as mídias sociais têm sido utilizadas tanto como espaços de esclarecimento como de especulações. Você tem acompanhado essas discussões?
Ariel – Devemos ressaltar que nas redes sociais e na internet existe uma democratização da comunicação a partir do momento em que pessoas filmaram nos seus celulares e denunciaram casos graves de violações dos direitos humanos, que são exibidos nas redes sociais e depois na imprensa. Então, nós temos bons exemplos de como utilizar a comunicação até para defender o Estado de Direito, para garantir os direitos humanos, mas nós vemos muitas situações também de intolerância geradas por boatos, por casos de irresponsabilidade, muitas vezes violando também direitos de crianças e adolescentes. Para isso, precisamos tanto de um trabalho educativo, voltado principalmente para a população infanto-juvenil, como também de coibir através de uma atuação policial, de delegacias especializadas na internet, que possam investigar esses crimes. É necessário também a punição desses setores. Temos algumas instituições que já fazem um trabalho importante nessa área, como o caso da SaferNet, que é uma Organização Não Governamental (ONG), e como o caso do Ministério Público Federal, que também tem promovido atuações nesse âmbito, mas é necessário um trabalho mais investigativo e de inteligência em relação a esses setores.
FI – Há um senso comum que afirma que adolescentes não são punidos após cometer atos infracionais. Sabemos da existência de medidas socioeducativas, previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Que medidas são essas, que inclusive sofreram alterações no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), visto que a população nem sempre tem informação sobre isso?
Ariel – O adolescente não fica impune, ele tem uma forma diferenciada de responsabilização, que tem um caráter muito mais pedagógico, educacional e de ressocialização do que a mera punição, do que simplesmente enjaular, jogar num presídio superlotado. Então, o caráter das medidas socioeducativas é exatamente manter os adolescentes em unidades de internação pequenas, que eles sejam separados conforme a idade, gravidade do crime que cometeram, tamanhos físicos, e que tenham escolarização, cursos profissionalizantes, cultura, esporte e lazer para que eles saiam reabilitados, se for necessário tratamento também de dependência de drogas, com o apoio da rede pública de saúde. Então, esse é o caráter das medidas socioeducativas. Hoje, no Brasil, muitas vezes um adolescente que comete um roubo tem ficado até mais tempo do que um adulto primário com menos de 21 anos que comete um roubo. Essa é uma das questões que mostra que não há impunidade em relação aos adolescentes. Além de a justiça da infância ser muito mais rápida, muito mais célere para aplicar a responsabilização do que a justiça criminal. Em 45 dias nós temos um resultado, enquanto na justiça criminal os processos duram anos e anos.
FI – Percebe-se uma grande confusão sobre o que seria responsabilização, para adolescentes que cometeram atos infracionais, e maioridade penal.
Ariel – A responsabilização no Brasil segue os parâmetros da convenção da ONU sobre os direitos da criança e do adolescente. A própria ONU definiu que é inadequado que todos aqueles que todos aqueles que tenham menos de 18 anos sejam submetidos a um processo criminal e sejam encaminhados para o sistema prisional de adultos, então esse é um parâmetro estabelecido internacionalmente pela ONU. No Brasil, nós temos a responsabilização juvenil a partir dos 12 anos. Então, se a criança que tem menos 12 cometer um crime, no máximo é encaminhado para um abrigo, para uma instituição de acolhimento de crianças que estejam em situação de risco. Agora, a partir dos 12, cometeu qualquer tipo de crime, chamado pelo estatuto de ato infracional, ele vai ser responsabilizado e pode ate cumprir internação, que é a privação de liberdade. Então essa é a falta de entendimento da população. Ele não vai ficar impune, só que a responsabilização dele é diferenciada em relação à dos adultos. Nós tivemos um avanço importante, a partir da criação da lei do sistema nacional de atendimento socioeducativo, que ela define os requisitos para o cumprimento das medidas socieducativas, define como devem ser as unidades de internação, os programas de liberdade assistida, os programas de prestação de serviço em meio aberto, como deve ser o atendimento do adolescente envolvido com drogas, que precisa também de um tratamento especializado, inclusive, essa lei do sinase já prevê que, se os laudos técnicos e psiquiátricos demonstrarem que ele mantém a sua periculosidade em razão do uso e drogas e de transtornos psiquiátricos, o adolescente pode ficar além dos 3 anos de internação.
FI – O ECA é uma política pública que garante direitos as nossas crianças e adolescentes, assim como traz os deveres compartilhados entre Estado, família e sociedade para com esta categoria social. Quando não implementado, reproduz uma sociedade onde crianças e adolescentes são cada vez mais estigmatizadas. E nas periferias isso é ainda mais visível. O que você pensa sobre isso?
Ariel – Uma questão que eu sempre trato é exatamente dentro dessa colocação, ou seja, o crime só inclui quando Estado e sociedade excluem. Então, a partir do momento em que um adolescente procura curso profissionalizante e não consegue, procura vaga numa escola decente de ensino fundamental ou médio, que tenha realmente um padrão adequado de educação, e não consegue, procura tratamento no SUS para a questão do envolvimento com drogas e não consegue, então, se todas essas portas se fecham, a porta do crime é que vai se abrir. Uma frase clássica do sociólogo Betinho tem a ver com isso: “se não vejo na criança, uma criança, é porque alguém a violentou antes; e o que vejo é o que sobrou de tudo o que lhe foi tirado”. Então, se nós vemos adolescentes hoje no crime é porque muitas violações ocorreram antes desses adolescentes estarem nessa situação.
FI – Qual a perspectiva? Como podemos avançar e nos mobilizar? O que devemos fazer nesse momento?
Ariel – Nós temos, claro, as ações estratégicas no parlamento. Temos hoje negociações que o governo tem feito através do próprio Ministério da Justiça, que é da ampliação do tempo de internação, que é uma estratégia política para evitar a redução da maioridade penal. Agora, além desse trabalho político que o governo tem que fazer, cabe às entidades da sociedade civil se mobilizarem e as entidades nacionais, como a OAB, que já se manifestou, entrarem com uma ação direta de inconstitucionalidade. Entendemos que a redução da maioridade penal é inconstitucional, pois não podemos abolir direitos e garantias fundamentais, como o direito do adolescente de responder com base numa legislação especial quando comete um crime ao invés de responder com base no código penal. Nesse período de discussão e de votações, precisamos buscar também espaços nos meios de comunicação para que a gente possa discutir e esclarecer melhor a sociedade sobre esse tema.
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