Ayla Nobre, escritora, mediadora social da Biblioteca Pública Estadual do Ceará e estudante de Ciências Sociais
Nos últimos meses venho escutando muitas pessoas se perguntando como adiar o fim do
mundo, como sair dessa zona de aflição que o caos do fim nos proporciona, como parar de viver
no limite. E é verdade que vem sendo tempos difíceis para todos, o meio ambiente cada vez
mais dando sinais de que nossos recursos são finitos, doenças novas aparecendo nos noticiários
e levando tanta gente querida, desgovernos retirando o que já era pouco para os que só tinham o
nada, e cada dia que passa mais um sinal de que as coisas não irão melhorar. As pessoas estão
nervosas, com medo e com angústias que remédios farmacêuticos não estão dando mais conta
devido a gravidade. Só que na realidade, essas pessoas estão percebendo um sentimento pós-
pandemia que por muito tempo foi somente das travestis.
Li faz pouco tempo que uma travesti foi assassinada num bairro próximo ao meu e que outra foi
achada com sinais de tortura em outra comunidade. Tudo isso em Fortaleza, Ceará, e no exato dia do orgulho LGBTQIA+.
Ou seja, o mundo, antes dele realmente acabar, já foi extinto para muitas pessoas, pessoas essas
que estão mortas e não podem tentar adiar o fim do mundo. O fim do mundo é então uma
realidade, ele não vai acontecer agora, mas muito ainda vai ser feito para que alguns mundos
sejam destruídos.
Estou usando essas metáforas pois primeiro, estou me aproximando muito de Ailton Krenak e
segundo, porque é junho de 2022 e como travesti, o meu fim do mundo começou em 2019.
O meu fim do mundo começou quando eu decidi ser quem eu queria ser. Em 2019 eu “assumi”
para minha mãe, e ainda me dá perturbações quando eu percebo que eu tive realmente que me
assumir, como se eu tivesse cometido um crime, como se eu fosse o crime, como se eu estivesse
fazendo algo de errado. E essa culpa por pensar estar fazendo algo errado foi consumindo a
minha mente por muito tempo. Os olhares das pessoas na rua me diziam o que eu não queria
saber, achei que só o que deveria me importar era a minha satisfação de finalmente estar me
entendendo como eu queria e do apoio de minha mãe, mas não, eu me enfurecia com os olhares
para o meu volume, todos os dias, constantes, olhando sem pudor algum para a minha genitália.
Como se só essa parte importasse no meu corpo.
Comecei a me injetar substâncias para que eu começasse a encarar o espelho de uma forma mais
amigável e em um ciclo mensal de injeções fui me moldando de uma forma que eu não esperava
mudar tanto. Mudou muita coisa, mudou em mim e mudou nos outros. Meu corpo já não era o
mesmo, comecei a ter peitos, bem pequenos no começo, tinham o mesmo tamanho de uma
seriguela, mas já chamavam a atenção principalmente dos homens nas ruas. Todos olhavam e
isso no começo chamava a minha atenção de alguma forma, eu achava interessante ser
assediada verbalmente por esses homens porque finalmente alguém estava me vendo como
mulher.
Antes de eu me chamar Ayla, costumava sair com um cara que me lia como uma mulher,
mesmo sem que eu tomasse qualquer hormônio na época. Ele fazia eu me sentir mulher, era
uma sensação de êxtase toda vez que ele se dirigia a mim no feminino, mas isso não me dava
orgulho, isso me dava excitação. Me fazia pensar que eu era a menina mais desejada do mundo.
Estar dentro do carro dele era excitante porque quase sempre eu achava que apareceria alguém
que pudesse nos pegar. Esse era o meu fetiche. Era para isso que ele servia para mim, para
satisfazer o meu fetiche, mas ele também se aproveitava de mim, se aproveitava do meu corpo
para satisfazer o fetiche dele. Meu corpo era o fetiche dele. Ele ficava de pau duro só de me ver.
E isso era o máximo. Achei então que eu poderia ser não só desejada mas talvez amada quando
cansasse de brincar com os fetiches dele.
Quando eu me cansei dos fetiches e quando entendi que outras pessoas já me chamariam pelo
meu nome e que não era somente ele que me leria como mulher, eu comecei a querer mais,
queria um namorado só meu, um amor só meu. Mas ele era casado, já tinha a mulher dele e nem
amante eu poderia ser dele porque nossa relação era de tamanha erotização que nunca cheguei a ver o cara de pé na minha frente, sempre era dentro do carro e com as janelas fechadas para
ninguém ver. Nossa relação cabia dentro de um carro pequeno e mal lavado onde das vezes que
nos vimos, em nenhuma delas a gente realmente se conheceu.
Então, eu sinto muita coisa escrevendo essas palavras, mas nenhuma delas é orgulho. Eu sinto
que mesmo que minha trajetória tenha sofrido menos baques que outras, ainda assim não
consigo me entender como uma travesti orgulhosa por conta de uma simples data. Não tem
como eu ter orgulho se eu ainda sinto que não venci, se eu ainda sinto que muitas de mim ainda
não venceram. A realidade é que eu estou cansada de ter que ser a travesti feliz, eu não estou
feliz, eu estou cansada.
Eu cansei de ser travesti.
Meu pai passou quase 2 anos sem me procurar quando me “assumi” travesti, e as notícias que
ele vê todos os dias nos jornais da hora do jantar é que as que são iguais a mim estão morrendo.
Mas elas não estão só morrendo, elas estão sendo brutalmente assassinadas, torturadas,
queimadas e tendo até seus corações arrancados. Então não sei se hoje ele se relaciona comigo
porque me entende como mulher ou se ele me mantém por perto porque tem medo do mesmo
acontecer com a filha dele.
No mês o orgulho LGBTQIA+ querem que eu fale do orgulho que eu tenho de ser quem eu sou,
da pessoa que lutei para ser, das coisas que conquistei e o que vier na minha cabeça que cause
algum conforto em quem está lendo. Só que neste momento, eu sinto tudo, menos orgulho.
Neste momento eu tenho um turbilhão de hormônios lutando por espaço dentro do meu corpo e
isso faz com que minha cabeça fique a mil. Eu, ainda tenho uma calcinha que me aperta o pau e
que de tempo em tempo tira minha concentração. Eu tenho que mostrar nos trabalhos que eu sou
boa o suficiente para estar no cargo em que estou. Eu venho ainda saindo como diversas pessoas
tentando superar relações que não deram certo. E, a última preocupação que eu tenho no
momento é se as pessoas conseguem ver o volume do meu pau quando bate um vento mais forte
e faz com que o tecido do meu vestido encoste no corpo e eu não quero que elas olhem.
Eu queria sentir orgulho, queria me entender de uma forma que não me cobrasse muito, queria
também que não me cobrassem tanto, queria aprender a ficar sozinha, queria aprender a ser
menos grossa, a ser menos chata. Queria descansar. Queria parar de escrever, escrever é muito
doloroso para mim. Sou uma escritora triste e cansada. Não queria estar triste e cansada. Queria
ser amada. Queria me orgulhar e ter quem se orgulhasse de mim. Queria viver o suficiente sem
que meu nome virasse apenas um número, uma estatística.
Por fim, essas palavras não são para as pessoas LGBQIA+ ou as que ajudam na luta das
travestis, desculpem. Esse texto é para as travestis que estão sobrevivendo, para as travestis que
estão lutando armadas apenas de suas existências e também para as travestis que não podem
mais se armar de suas existências, mas nos armam com suas memórias.
Que inferno é ser travesti nesse país.
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