A relevância do apoio e da proteção à mulher no percurso da rota crítica
texto que compõe o primeiro volume dos “Seminários Outros Olhares”, organizado pela Fábrica de Imagens.
Por Maria do Socorro Camelo Maciel.
RESUMO
O presente artigo objetiva demonstrar a relevância dos fatores externos que contribuem para a recusa da mulher à violência, como a acolhida nas queixas, a escuta respeitosa, o apoio especializado e as ações e as medidas que visam à proteção da mulher no percurso da rota crítica e que contribuem com seu objetivo. Também enfatiza os elementos que obstaculizam essa trajetória, argumentando que a recusa em oferecer ajuda à mulher que sofre violência, a descrença nos seus relatos e a não interferência “nas brigas de marido e mulher” podem ser decisivos para a preservação da sua integridade física, representando a diferença entre a sua vida e sua morte e entre a vida e a morte dos(as) seus(uas) filhos(as). O artigo também aborda a relevância de alguns acordos e medidas de proteção à mulher no âmbito jurídico-social, instituídos em décadas recentes, os quais representam ganhos políticos significativos no enfrentamento daquela violência, a exemplo da lei nº 11.340 – Lei Maria da Penha – e da Política Nacional de Assistência Social.
PALAVRAS-CHAVE: Violência contra a mulher. Rota crítica. Apoio especializado.
INTRODUÇÃO
Rota crítica é o conceito que remete à díade contida na trajetória que as mulheres percorrem para superar a violência doméstica ou familiar e as respostas que obtêm para essa superação. Compreende um processo que envolve a tomada de decisão da mulher pelo fim das violações e o acolhimento da decisão por redes institucionais de apoio ou grupos sociais aos quais tenha acesso. A rota crítica tem início quando a mulher decide romper o silêncio acerca da situação de violência e dividir o problema com alguém externo ao seu círculo familiar e de amizade.
Nessa trajetória, a violência já existente se agudiza e multiplica pelos atos de intimidação, de ameaça e de atentados contra a sua vida e da dos(as) seus(uas) filhos(as). É o momento relevante da desobediência, um complexo momento de recusa da violência e de resgate de direitos, mas também um momento crítico, visto que a quebra do silêncio pode resultar em punições severas para a mulher, pois ao iniciar a rota crítica, a mulher quebra “as regras” que lhes foram impostas pelo agressor, necessitando, por isso, da acolhida respeitosa e consistente ao seu pedido de ajuda.
O apoio à mulher na rota crítica também se faz relevante, porque ela nem sempre dimensiona os riscos aos quais está exposta em decorrência da desobediência. Assim, as respostas institucionais por parte dos equipamentos, a existência de políticas robustas de enfrentamento à violência e o papel estratégico dos acordos e dos tratados de proteção à mulher colocam o rompimento do ciclo da violência doméstica e familiar no horizonte do possível. Dessa forma, o que leva a mulher à decisão de denunciar a violência vivida é muito relevante para a quebra do ciclo da violência, mas o apoio que ela recebe nesse processo é decisivo na definição do tempo e da trajetória a ser percorrida para que consiga se superar a violência e construir situações substantivamente novas na sua vida.
Mapeando contribuições para o fortalecimento da mulher na rota crítica
O pacto do silêncio e a banalização da violência contra a mulher promovem para aquelas que sofrem violência o adiamento das estratégias de superação, que vai desde a primeira ida aos equipamentos especializados e até a tomada de consciência acerca da violência camuflada no cotidiano. Schraiber et al. (2003) afirma que o silêncio da mulher que sofre violência aguça a necessidade de aprendizado em termos de expressão da dor e de construção ou reconstrução de novos vínculos com pessoas ou instituições que lhes propiciem suporte para o início da rota crítica – definida por Sagot (2000) como um processo que se constrói a partir da sequência das decisões e das ações executadas pelas mulheres afetadas pela violência, bem como pelas respostas encontradas em sua busca de soluções. A rota crítica, nesse sentido, constitui um processo interativo formado tanto pelos elementos relacionados às mulheres afetadas e às ações empreendidas por elas quanto pela resposta social encontrada – o que, por sua vez, se converte em um elemento determinante para a recusa da violência pelas mulheres.
Enquanto a mulher guarda segredo sobre a violência vivida, dificilmente busca mecanismos para a sua superação, sendo imprecisos os fatores impulsionadores do desejo de rompimento do ciclo da violência.
Sagot (2000) lembra que a despeito de parecerem óbvios, os fatores impulsionadores do desejo das mulheres pelo fim da violência não são simplórios. A relação violenta possui uma dinâmica opressiva complexa que impede o impulsionamento da mulher à realização daquele desejo. Nas suas palavras:
O que leva uma mulher a agir para romper o ciclo da violência quando por vezes vivencia a situação durante anos? A resposta a esta pergunta, ainda que possa parecer óbvia, não é tão simples. As dinâmicas de uma relação violenta são tão complexas e opressivas que os impulsos das mulheres pela sobrevivência não são construídos facilmente. No entanto, esta complexidade vai gerando sentimentos e motivações que culminam em decisões pela busca de alternativas à situação vivida. (SAGOT, 2000, p. 91, tradução nossa).
Assim, as respostas obtidas ao iniciar a rota crítica são decisivas. A mulher está disposta a quebrar a regra do silêncio, mas ao fazê-lo, não dimensiona os riscos aos quais se expõe. Igualmente não possui clareza em torno das possíveis estratégias a serem adotadas para o rompimento do ciclo da violência, pois tal como afirma Beauvoir (1986), quando fala sobre o homem, a mulher é juíza e parte, não podendo se mostrar imparcial diante do problema no qual ela própria está envolvida, porque o que está pondo à mesa é a relação de intimidade que mantém com o agressor. Daí a necessidade vital de obter respostas rápidas, coerentes e eficazes e, se possível, pronta intervenção sobre o problema revelado. Ademais, ao iniciar a sequência de idas e vindas para a superação da violência, a mulher sofre o aprofundamento de outras formas de violência pessoais ou institucionais.
A recusa em oferecer ajuda à mulher que sofre violência, a descrença nos seus relatos e a não interferência “nas brigas de marido e mulher” podem significar a diferença entre a sua vida e sua morte e entre a vida e a morte dos(as) seus(uas) filhos(as). Inversamente, a atitude acolhedora por parte dos(as) profissionais e/ou das pessoas com as quais mantém contato, pode contribuir para a revelação dos segredos. A não verbalização da violência amortece os medos e as dores, contribui para a manutenção da sensação de equilíbrio da relação, protege a família e o agressor. Nas palavras de Diniz e Pondaag (2004, p. 183):
[…] a ocultação da violência pela mulher através do silêncio e do segredo tem múltiplas funções: é uma forma de lidar com as ameaças do agressor e, portanto, de autopreservação das mulheres, é uma maneira de preservação identitária das mulheres, educadas para serem as mantenedoras dos vínculos conjugais e familiares; é um jeito de cuidar do outro, prevenindo o impacto-dano que a revelação do episódio de violência teria sobre pessoas importantes e queridas, principalmente os filhos; e é um expediente de preservar tanto a família de origem quanto a família nuclear, ou seja, preservar a estrutura social.
Assim, a ocultação da violência pode ser útil na preservação da estrutura social, mas impede o aprendizado de um novo olhar para a superação da dor, já que a imputação de culpas à mulher pela violência sofrida é um processo construído socialmente ao longo da sua vida, e a superação dessa culpa consiste em algo nem sempre fácil. A negação da culpa, a não aceitação da responsabilidade imposta socialmente às mulheres, aponta para a desconstrução da educação para a dor.
Dessa forma, a escuta respeitosa, o atendimento humanizado, o conhecimento sobre o ciclo da violência são fomentadores do ambiente favorável ao desenvolvimento da sensação de segurança do qual a mulher necessita para empreender os movimentos por vezes contraditórios para a quebra do ciclo da violência. Conforme referência anterior citada neste texto, a existência de elementos externos, que discutiremos a seguir, contribui para essa sensação de segurança.
Acordos e políticas de proteção à mulher: conquistas das décadas recentes
O exame do conjunto de conquistas obtidas a partir da segunda metade do século XX em termos de direitos humanos das mulheres mostra um quadro significativo no sentido da sua acolhida no percurso da rota crítica: a celebração de acordos, tratados e convenções internacionais e a instituição de redes de proteção e de atendimento apontam para uma mudança substantiva na condição da mulher que sofre violência doméstica e/ou familiar. Os compromissos firmados – não restritos ao campo jurídico, mas abrangentes também ao campo dos direitos sociais – foram assumidos pelos Estados em âmbito nacional e internacional. Tais compromissos acenam para um quadro positivo de relações mais justas entre homens e mulheres e de uma maior intolerância à violência contra elas.
Durante a Conferência Internacional de Direitos Humanos, promovida em Viena em 1993, os Estados reconheceram a especificidade dos direitos humanos das mulheres e acataram as obrigações de proteger e promover esses direitos, comprometendo-se a prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher por meio da adoção de medidas que possibilitem a investigação, a apuração e a punição dos agressores. Os Estados assumiram também o compromisso de assegurar recursos adequados, suficientes e efetivos para o devido atendimento e a compensação às vítimas desse tipo de violência, por entendê-la como uma violação dos direitos e das liberdades fundamentais e, como tal, fator limitante total ou parcialmente do gozo daqueles direitos.(PINAFI, 2007).
No cenário nacional, foram incorporados, a partir da segunda metade dos anos 1980, uma série de políticas voltadas para o segmento mulher, dentre as quais são pioneiras a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), bem como das Casas Abrigo, destinadas a assegurar moradia segura às mulheres em risco de morte em decorrência da violência doméstica. Outras garantias foram instituídas pela Constituição Federal brasileira de 1988, tais como o rompimento do princípio da desigualdade entre homens e mulheres, expresso no Código Civil de 1916, a proibição das discriminações por sexo, raça, cor, opção religiosa, entre outras.
Em janeiro de 2003, foi criada a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) com status de ministério. Em 2004, outras duas importantes conquistas foram vivenciadas pelas mulheres brasileiras: a instituição da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e a promulgação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS).
[…] estruturada a partir do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), elaborado com base na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2004 pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher. O PNPM possui como um de seus eixos o enfrentamento à violência contra a mulher, que, por sua vez, define como objetivo a criação de uma Política Nacional. (BRASIL/SPM, 2005, p. 2).
Esta última trouxe em seu bojo uma série de mecanismos de proteção social voltados às mulheres que têm seus direitos violados em virtude da violência doméstica, tais como os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), os Centros de Referência e Atendimento às Mulheres em Situação de Violência Doméstica e as Casas Abrigo. Assim, prevê o desenvolvimento de ações específicas para tal público.
Na PNAS, há o reconhecimento das transformações em curso nas famílias brasileiras, da existência de novos arranjos familiares e da necessidade de separação da família ou da parentela por situações de violência familiar, num processo de rompimento com o modelo de familiar nuclear embasador das políticas voltadas para aquele público.
A partir desse reconhecimento, a PNAS exibe focos diferenciados de ações e por isso está estruturada de forma a abraçar situações de violação dos direitos de determinados indivíduos, dentre eles, as mulheres.
Norteando-se nessa premissa, desenvolve um conjunto de ações, programas e projetos no âmbito da Proteção Social Básica (PSB) e da Proteção Social Especial (PSE), a qual tem por direção:
a) proteger as vítimas de violências, agressões e as pessoas com contingências pessoais e sociais, de modo que ampliem a sua capacidade para enfrentar com autonomia os revezes da vida pessoal e social; b) monitorar e reduzir a ocorrência de riscos, seu agravamento ou sua reincidência; c) desenvolver ações para eliminação/redução da infringência aos direitos humanos e sociais. (BRASIL/MDS/SNAS, s/d, p. 3).
É no eixo da PSE – que se efetiva através de serviços de média e de alta complexidade – que são desenvolvidas ações voltadas para a redução dos danos vividos por aqueles(as) sob contingências pessoais e sociais desfavoráveis.
No caso das mulheres em situação de violência, essas contingências referem-se ao rompimento dos vínculos com a família de origem, inclusive com a família extensiva e com amigos(as). Referem-se também à interrupção ou à finalização da rede de estratégias para viabilização da reprodução material e social do grupo familiar.
A PSE, portanto, é a que traz a proposta de lidar com o problema da violência contra a mulher por meio do acolhimento e do acompanhamento realizado nos equipamentos específicos para tal fim. Assim, para o atendimento à mulher em situação de violência, a PNAS insere no âmbito da PSE os programas de enfrentamento à violência e os equipamentos estratégicos para o enfrentamento da violência contra a mulher, como os Centros de Referência da Mulher em Situação de Violência e as Casas Abrigo para mulheres em iminente risco de morte.
A ação de tais políticas e programas na área social é fortalecida por dispositivos de natureza jurídica, como a Lei Maria da Penha, promulgada no Brasil em 2006. Importante mecanismo instituído em favor dos direitos das mulheres, a lei 11.340/2006, ou Lei Maria da Penha, é responsável pela tipificação e coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher e pela instituição de formas mais severas de punição dos autores dessa violência.
Dentre outras medidas importantes, a Lei Maria da Penha aboliu as penas pecuniárias, retirou a ameaça de morte do rol de crime de menor potencial ofensivo e instituiu as medidas protetivas de urgência em favor da preservação da vida da mulher em situação de violência. Com a promulgação da lei, a sensação de segurança entre as mulheres ampliou-se, assim como o incentivo pelo fim do segredo em torno da violência, contribuindo para o fortalecimento das mulheres na rota crítica. Após oito anos de vigência da lei, no entanto, dados mostram que o feminicídio no Brasil não diminuiu: ocupamos a 7ª posição entre os 84 países do mundo que possuem as maiores taxas, com 4,4 de assassinatos de cem mil mulheres. Exatos 68,8% das ocorrências de violência contra as mulheres se dão no domicílio, e os autores dos crimes, em sua maioria, são os parceiros íntimos.
Em que pese a relevância da Lei Maria da Penha como instrumento de coibição da violência e a despeito da relevância dos tratados e dos acordos acima elencados, muitos empecilhos à superação da violência doméstica e familiar ainda persistem obscurecendo as conquistas femininas das últimas décadas: a precariedade da rede de atendimento dificulta o acolhimento da mulher em situação de violência; o baixo ou ausente investimento na formação dos(as) profissionais diretamente envolvidos no atendimento das mulheres, bem como em campanhas educativas, impede o maior e mais eficaz alcance das ações de conscientização da sociedade sobre a violência de gênero; a ampliação do número de delegacias especializadas nos municípios de grande e médio porte e a instalação naqueles de pequeno porte dificultam o início da rota, contribuindo para a persistência da violência e do feminicídio.
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