Caminho de Aline, uma volta ao mundo a pé pela vida e em resposta à Aids
Por Marcelo Monti Bica - Brasileiro que caminha por um mundo mais empático | @caminhodealine

Há um pouco mais de três anos saí caminhando de Porto Alegre, minha cidade natal, em um projeto que intitulei “Caminho de Aline, uma volta ao mundo a pé pela vida e em resposta à Aids”. Aline era minha irmã e faleceu em 2008. Ela não aderiu ao tratamento com antirretrovirais por medo que as pessoas descobrissem que ela tinha HIV, por medo de ser julgada e discriminada. Ela não queria que se falasse sobre isso. Portanto, costumo dizer que o que tirou minha irmã de sua família foi o preconceito e não o vírus.
Durante um ano e sete meses caminhei pelo Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, percorrendo quase 10 mil km. Interrompi a caminhada provisoriamente devido à pandemia, mas a meta é caminhar por dez anos, por 70 países, atingindo a marca de aproximadamente 90 mil km. Estou convicto que nossa maior contribuição ao mundo é nossa vida vivida com gosto e intensidade. Conciliar essa vivência com transformação social é melhor ainda. A história de Aline levou-me a fazer dessa viagem um lugar para refletir sobre estigmas e sonhar com um mundo mais empático e amoroso.
Não tenho, obviamente, pretensão de que sozinho eu acabe com o preconceito. O que eu quero é encontrar pessoas e nesse encontro pensarmos juntas e juntos em outros horizontes e partilharmos saberes, seja numa rodovia ou estradinha isolada de tudo, perdida no mundo. Se em um minuto ou dois de conversa eu conseguir mostrar o que sente uma pessoa que leva a marca de um estigma e isso ajudar essa pessoa a ser mais solidária e empática com todas as sofredoras sofredores desse mundo, acho que já ganhei bastante coisa.
Ao ter percorrido esses países da América Latina apenas caminhando aprendi que o extraordinário é feito de coisas simples. Podemos ficar surpresos com a distância que percorri, mas destaco que os quase dez mil quilômetros caminhados são o resultado de um passo e outro e outro. Ou seja, eu percorria aproximadamente 20 ou 30 km diários, distâncias que podem ser feitas por qualquer pessoa em bom estado de saúde e com um pouco de treino. Portanto, estou convicto de que é a soma de coisas factíveis que transforma o impossível em possível.
Poderíamos ver essa viagem como uma grande aventura ou como uma mostra de tudo quanto o ser humano pode realizar e superar. No entanto, sinto que para mim a caminhada tem também um sentido terapêutico, isto é, tem servido para me reconstruir interiormente e talvez até curar algumas feridas deixadas pela vida. O sofrimento, a desigualdade, as violências físicas e emocionais que marcam uma existência retiram nossas forças e por isso, às vezes passamos a crer que não somos nada e não podemos nada. Essa viagem, ao contrário, tem me ajudado a reconstruir minha autoestima e a me ver com potencial para fazer coisas que eu havia pensado que não podia ou não conseguia.
Fui chamado de Forrest Gump da América Latina por alguns jornalistas dos países que passei. Eu gosto e me identifico com esse título, pois no filme as pessoas esperavam que o personagem, quando perguntado pelo motivo de sua corrida, oferecesse uma resposta filosófica que servisse de inspiração para outras pessoas. Forrest corre simplesmente porque sentiu vontade de correr. Em outras palavras, ele não se pergunta pelo sentido da vida, ele simplesmente a vive. Da mesma forma, as pessoas esperam que essa caminhada tenha um motivo que se encaixe aos parâmetros que socialmente e culturalmente aceitamos como válidos para se construir uma vida. Eu caminho pelo simples fato de que tive oportunidades que me permitiram ver que é possível viajar caminhando.
A princípio, essa pode parecer uma resposta simplista e óbvia, mas se está tão claro que é possível viajar caminhando, porque pouquíssimas pessoas tiveram antes essa iniciativa? Quando pensamos em viagem pensamos em avião, ônibus, carro e talvez mais radicalmente em moto ou bicicleta, mas nunca a pé. Isso se dá talvez porque nos acostumamos a ver a vida sempre pela mesma janela, isto é, a partir dos modelos estabelecidos. Não estou dizendo que temos que romper com esquemas e convenções sociais. Tampouco penso que para sermos felizes temos que caminhar por dez anos, mas gostaria muito que essa viagem nos inspirasse a buscar alternativas que nos ajudem a amar mais e com isso fazer a vida mais leve.
Espero que em breve o Caminho de Aline – uma volta ao mundo a pé, seja retomado, pois há ainda muito a ser percorrido, e aqui me refiro as estradas do mundo e também a viagem interior da qual a exterior é apenas uma metáfora. E onde quer que estejamos, parados ou andando, avançando ou retrocedendo que possamos dar a melhor resposta para nos tornar mais solidários, empáticos e justos e fazer com que esse mundo seja de fato uma casa comum para todas e todos.
(Esse texto é uma adaptação de reflexões pessoais e entrevistas concedidas ao jornal ZH e Folha de São Paulo)