Por Christiane Ribeiro, Feminista, reaprendendo todo dia a ser filha, irmã, amiga, prima, sobrinha, afilhada, madrinha, tia, companheira, militante, mãe e, principalmente, mulher.
Foi solicitado a mim que escrevesse um texto para o site da @fabricadeimagens.ong, o qual abriria uma série de escritos alusivos a esta semana em que celebramos o Dia Internacional das Mulheres, uma das datas mais importantes no calendário dos movimentos feministas.
Sobre o histórico da data, há uma infinidade de sites* confiáveis para pesquisas. E sobre as bandeiras de luta mais atuais e imprescindíveis para nós feministas, certamente serão abordadas nas mais diversas mídias por ativistas, militantes, pensadoras, escritoras, cientistas, professoras, políticas, todas mulheres atravessadas por pautas comuns e/ou específicas, a partir de questões e do lugar que ocupam.
Fiz essa introdução para dizer que dessa vez meu relato será pessoal, afetivo, cheio de memórias.
Há dias venho fazendo uma retrospectiva, reavaliando minha trajetória, a rede que construí à minha volta, repensando relações, projetos, sonhos... Em agosto próximo chegarei aos 50 anos e, mais da metade deles, dediquei-me às lutas sociais, sobretudo contra a Aids e em movimentos feministas. Mais recentemente, passei a integrar o movimento dos pontos de cultura e também me filiei a um partido político, o Psol. E em todos esses espaços se interseccionam temáticas relacionadas aos feminismos, às questões de gênero, à história de várias mulheres.
Assim, quero lembrar hoje dessas muitas mulheres que cruzaram a minha estrada. Não apenas aquelas que encontrei a partir do momento que comecei a trilhar os caminhos da militância. Mas, principalmente, as que vieram bem antes, em situações e tempos distintos, seja por laços de sangue, de amizade, de trabalho, de vizinhança, todas trazendo na sua bagagem de vida, histórias de dores, resistência, afirmação, renascimento, lutas nada distantes das que abraçamos atualmente nos movimentos sociais. Para preservá-las, não citarei seus nomes e nem as identificarei diretamente.
À medida que eu adentrava nas lutas e nas leituras sobre os feminismos, recordava de inúmeras situações dolorosas que vi acontecer ao meu redor, na infância e adolescência no Piauí, meu estado de origem, e entendia os tantos casos de violência doméstica acobertados pelos velhos ditados como, “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” ou “ela ainda está com ele porque quer”. Tempos depois, já residindo em Fortaleza, eu soube do assassinato de uma jovem da turma a qual eu me juntava nas férias. Um feminicídio!
Naquele tempo, várias mulheres próximas a mim viviam relacionamentos abusivos, muitas delas sem nem se dar conta de quão tóxicas eram as situações as quais foram submetidas. Os exemplos são muitos, vindos não apenas de companheiros, mas também de familiares, pais, mães... como eu queria ter estado mais próxima e ter sido mais persuasiva com elas, para que não se sentissem tão responsáveis, com a autoestima tão baixa, tão dependentes afetivamente, tão silenciadas...
Também gostaria de ter apoiado mais uma amiga que decidiu interromper uma gravidez. À época, além de eu não ter as leituras e o entendimento que tenho hoje sobre o aborto, ainda recaía sobre mim o peso de uma educação familiar extremamente conservadora e cristã. Minha família, embora sendo de pai e mãe trabalhadores, com poucos recursos financeiros, reproduzia de forma velada ou não, uma série de preconceitos morais, classistas, machistas, racistas e lgbtfóbicos. Perceber e entender hoje esses mais diversos comportamentos como preconceituosos e discriminatórios a partir de onde eu vim, sem dúvida é algo doloroso, principalmente por muitos serem dirigidos inclusive a mulheres que se dedicavam e cuidavam da gente. Não me eximo disso. No entanto, voltar a esses tempos e lugares, reavaliando-os e resignificando-os, tem sido necessário para reforçar o quanto ainda preciso construir para o desenvolvimento de minhas relações atuais e para quem vem depois. Nesse percurso, individualmente, pude acertar arestas. O que cabe a mim, tenho buscado rever.
Reverencio várias mulheres, muitas da minha família, que por motivos diversos, com companheiros vivos ou não, foram mães-solo, únicas responsáveis pelo sustento e, sobretudo, pela educação e formação de suas filhas e filhos, com lágrimas, com julgamentos, com renúncias, com cobranças, mas com uma fortaleza que, no lugar delas, nem sei se eu teria.
Algumas adoeceram, da alma ou do corpo, perderam a batalha, deixaram lições, lembranças boas e saudades. Lutos antigos e recentes, inclusive por Covid, o que além da tristeza, nos revolta. Umas seguem (re) existindo e se (re) inventando todos os dias. Outras, perderam filhas ou filhos; nem consigo imaginar, dimensionar (se é que isso é possível), uma dor e um vazio tão pungente! Algumas, ainda, apenas vivem para cuidar de outras pessoas e anulam seus sonhos, seus projetos, seus desejos, por escolhas ou necessidades.
Recordo também de algumas amigas de colégio que enfrentaram olhares de reprovação por terem uma deficiência, por serem altas demais, gordas, namoradeiras, destemidas, questionadoras, terem cabelos crespos, por fugirem a quaisquer regras.
Todas essas mulheres estiveram comigo em algum momento da minha vida. Guardo-as em mim com muito afeto, respeito, acolhimento e gratidão. Com elas aprendi. Se não durante o tempo que caminhamos juntas, depois com meus estudos e vivências nos movimentos sociais. A elas peço perdão por não segurar suas mãos como eu deveria, como eu gostaria. Agi ou não com os recursos que eu tinha à época. Muitas vezes também carregando pesos dos quais tenho me curado. Também me perdoo. É por elas e por todas as dores que sentiram e que ainda sentem, que estou aqui, muitas vezes desanimada, porém sacudida a seguir na luta. “Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas (Audre Lorde)”
E a vocês, mulheres que estão lendo este texto, se desejarem, façam também esse exercício. Perdoem e se perdoem, principalmente. Não, necessariamente, no sentido cristão, de resignação, d
a diante da vida e, particularmente, de sua história e seu devir. Todas nós merecemos nos curar das dores que nos causaram e que causamos.
Sigamos juntas!
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*Sugestões de sites que abordam pautas feministas:
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